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Maria de Magdala

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Autor: Lamentação sobre o Cristo Morto (detalhe), de Botticelli

Maria de Magdala (José Saramago, O evangelho segundo Jesus Cristo)

Maria de Magdala é uma personagem-chave do romance O evangelho segundo Jesus Cristo (1991), de José Saramago, responsável por ensinar, guiar e acompanhar Jesus durante o atribulado arco narrativo em que o protagonista tem de agir como emissário de Deus, mesmo quando ele já não quer mais sê-lo. Designada por um topônimo bíblico característico da tradição e da literatura a que remete, Maria de Magdala é emblemática dos múltiplos diálogos a partir dos quais o romance se constrói, da Bíblia utilizada por Saramago – a versão portuguesa organizada pela Ordem dos Frades Menores Capuchinhos, que recorre àquela alcunha menos comum – aos evangelhos apócrifos, passando pela iconografia religiosa e por topoï literários e cinematográficos de representação da mulher e das personagens bíblicas específicas nas quais ela se baseia.

No primeiro capítulo do livro, que descreve uma xilogravura atribuída a Albrecht Dürer, ela ainda é Maria Madalena, a personagem mais discutida pelo narrador, apresentada com o nome e os traços do cânone iconográfico, isto é, como uma mulher sedutora, prostituta arrependida e loira (Saramago, 2016: 12-15). Como é próprio de Saramago, o narrador convoca o conhecimento do leitor a propósito dessa personagem, “tão pecadora mulher”, “como é geralmente sabido” (14) e representado por uma tradição textual e pictórica que condensou ao menos três personagens e três episódios bíblicos diferentes numa mesma figura (Lucas 7:36-50 e 8:2, Mateus 26:7, Marcos 14:3, João 12:3; Murray, 2014: 332-335).

Se é certo que as personagens e o romance de Saramago de maneira geral também condensam, propositadamente, figuras e episódios distintos, servindo-se da representatividade temática e imagética sobretudo da história da pintura, no caso de Maria Madalena/Maria de Magdala (para alguns exemplos, ver Grünhagen, 2024), também é evidente o exercício narrativo de repensar, entre outros aspectos, o tipo no qual ela se tornou e o papel que se lhe costuma atribuir. A personagem volta a aparecer no capítulo dezessete, já com o sobrenome preposicionado, marcando tanto a iniciação na vida adulta de Jesus quanto a sua humanização.

Com o pé ferido, Jesus bate à porta de uma casa à saída de Magdala, e a mulher que vem socorrê-lo perturba-o de imediato: “não havia dúvida, a túnica, mesmo para um leigo, era de prostituta, o corpo de bailarina, o riso de mulher leviana” (279; em referência a Eclesiástico 9:3, 4 e 6). Construída com versos dos chamados livros de sabedoria, a cena de encontro e de amor entre Jesus e Maria de Magdala joga com as advertências bíblicas ao risco que a mulher – prostituta, adúltera ou simplesmente mulher –, com suas “ciladas” e “encantos”, representaria para o homem. Opera-se uma inversão de papéis, sendo a prostituta quem ajuda a família de Jesus, com vinte moedas que ele só vai descobrir que recebeu quando retorna a Nazaré (294), e cabendo-lhe o lugar de mestre: “Maria de Magdala serviu e ensinou o rapaz de Nazaré que (...) lhe viera pedir que o aliviasse das dores e curasse das chagas que, mas isso não o sabia ela, tinham nascido doutro encontro, no deserto, com Deus” (283-284).

Embora não se trate de uma associação nova nem de uma primeira proposta narrativa de uma relação amorosa entre Jesus e Maria de Magdala, este se tornou um dos episódios mais polêmicos d’O evangelho, à semelhança do que ocorreu com outras obras que a imaginaram, como A última tentação (1955), de Nikos Kazantzakis, e a subsequente adaptação para o cinema de Martin Scorsese, lançada em 1988. Para Saramago, porém, tal relação não deveria ser lida como mera afronta ao texto bíblico; mais do que “contestar a ideia da castidade de Jesus, o que seria uma provocação banal”, trata-se de “conferir e restituir à mulher o lugar que certas épocas nunca lhe reconheceram” (in Viegas, 1991: 34).

Nesse contexto, pode-se falar em uma evolução narrativa da personagem que vai da Maria Madalena tópica e tipificada do primeiro capítulo à Maria de Magdala por quem Jesus se apaixona, forte, ativa e assertiva, com traços inclusive diferentes da mulher loira e de olhos claros que a pintura ocidental cristalizou: a Maria que Jesus encontra tem “cabelos pretos” e olhos “negros, brilhantes como carvões de pedra” (279-280). É nela que o protagonista encontra o apoio e a compreensão que lhe falta na família; é ela quem o acompanhará até ao fim da sua trajetória, assumindo, ao lado de Pastor e do narrador do livro, uma voz marcadamente crítica à figura de Deus e ao seu projeto sacrificial: “Se eu não acreditasse em ti, não teria de viver contigo as coisas terríveis que te esperam (...), Terias de ser mulher para saberes o que significa viver com o desprezo de Deus, e agora vais ter de ser muito mais que um homem para viveres e morreres como seu eleito” (309).

Se é proporcionalmente pequeno o espaço que Maria de Magdala ocupa na narrativa, a sua relevância é destacada no contexto d’O evangelho e mesmo do conjunto da obra de Saramago, tratando-se de uma personagem por quem o escritor não “escondia” a sua “admiração”: “como amante, ela é a parceira forte da relação Jesus x Maria. No fundo eles formam o casal que passa de livro em livro, como Baltasar x Blimunda no Memorial do convento, Ricardo Reis x Lídia em O ano da morte de Ricardo Reis, Raimundo x Maria em História do cerco de Lisboa” (in Coury, 1991: 7).

 

Referências

BÍBLIA SAGRADA. Versão portuguesa preparada a partir de textos originais pelos Rev. Padres Capuchinhos. Lisboa: Difusora Bíblica, 1976.

COURY, Norma (1991). “‘Cristo foi um mártir com culpas’: entrevista com José Saramago”. Jornal do Brasil, caderno Ideias, 2 nov. 6-9.

GRÜNHAGEN, Sara (2024). “Os cabelos pretos de Maria de Magdala”. Fundação José Saramago, Revista Blimunda, n.º 136.

MURRAY, Peter et al. (2014). The Oxford Dictionary of Christian Art and Architecture. Oxford: OUP.

SARAMAGO, José (2016). O evangelho segundo Jesus Cristo. 35.ª ed. Porto: Porto Editora.

VIEGAS, Francisco José (1991). “Uma biografia de Jesus, segundo José Saramago”. Revista Ler, n. 16. 26-34.

 [publicado a 07-07-2024]

 

Sara Grünhagen