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Ricardo Reis

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Autor: Almada Negreiros
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Autor: Porto Editora

Ricardo Reis (José Saramago, O ano da morte de Ricardo Reis)

Figura do universo heteronímico pessoano transformada em personagem, Ricardo Reis é o protagonista do romance de José Saramago que leva seu nome no título, publicado em 1984. O ano da morte de Ricardo Reis parte dos dados biográficos e da poética do heterônimo de Fernando Pessoa para projetá-lo em outro contexto, explorando a referência que lhe serve de base e ao mesmo tempo marcando a diferença que resulta dessa recriação: Ricardo Reis, embora apresente os traços físicos e o temperamento que lhe são conhecidos, em nenhum momento é chamado de heterônimo no romance, e é como personagem de ficção que sobrevive ao seu criador, ao longo dos pouco mais de oito meses em que decorre a ação do livro.

Ricardo Reis é figurado inicialmente como um viajante entre outros chegando a Lisboa, e sua individualização dá-se de maneira gradativa e indireta, em comparações ou situações em que a própria personagem é chamada a se apresentar. Na primeira vez em que surge, Reis é comparado com o bagageiro que o acompanha, homem “seco de carnes, grisalho, e moreno, e de cara rapada, como daquele foi dito já” (Saramago, 1993: 15). O traço destacado refere-se à descrição que Pessoa faz dos heterônimos – “Cara rapada todos” –, na Carta a Adolfo Casais Monteiro de 13 Jan. 1935, uma das principais referências sobre o universo heteronímico e a base para a caracterização de Reis no romance. São dessa carta alguns dos dados biográficos que a personagem apresenta quando chega ao Hotel Bragança: “escreve no livro das entradas, [...] nome Ricardo Reis, idade quarenta e oito anos, natural do Porto, estado civil solteiro, profissão médico, última residência Rio de Janeiro, Brasil, donde procede, viajou pelo Highland Brigade” (20-1). É dessa maneira indireta, e em constantes remissões à obra de Pessoa, que o perfil de Ricardo Reis é traçado: trata-se de um sujeito disciplinado (50), erudito (22-3), conservador e monárquico nas suas preferências políticas (66, 81, 137) e poeta no seu tempo livre (47), com uma obra marcada por um “epicurismo triste” (179). Ao longo da trama, porém, essas características são relativizadas ou revistas no dia a dia de Ricardo Reis, cuja visão de que “Sábio é o que se contenta com o espectáculo do mundo”, a primeira epígrafe do romance, é questionada no desenvolvimento da narrativa, resultando menos numa evolução e mais numa confrontação, via dispositivos metalépticos e metaficcionais, da personagem, construída como prolongamento transficcional do heterônimo.

O motor inicial da ação é a morte de Fernando Pessoa em novembro de 1935, que leva Ricardo Reis a retornar a Portugal, um mês depois, sem projetos definidos. O ano de 1936 é, portanto, aquele do título do livro, marcado por acontecimentos perturbadores que se interpõem, direta ou indiretamente, no percurso narrativo da personagem, da intensificação do poder de Hitler na Alemanha (202, 260) ao golpe militar em Espanha (262, 371), passando, no contexto português, pelo fortalecimento do Estado Novo e de Salazar (85-86, 137), com obras e ações populistas e forte movimento de nacionalismo (113, 158; 321). Esses fatos históricos vão funcionar como condicionantes extraficcionais para a ação da personagem, compondo um espetáculo trágico diante do qual a desejada impassibilidade de Ricardo Reis torna-se impraticável: a História intervém na ficção e cobra dela uma resposta.

Embora a atitude recorrente de Ricardo Reis seja de se colocar à margem dos acontecimentos, consoante a personalidade heteronímica, ele também se desenvolve e é confrontado na relação que estabelece com as outras personagens. Praticamente só visível aos olhos do protagonista, Fernando Pessoa é figurado no romance como uma espécie de sombra que acompanha Reis em seu retorno a uma Lisboa cinzenta e lúgubre, um Virgílio que guia Dante em sua passagem por outro mundo (Saramago, 1999: 110). Ainda que apareça apenas doze vezes, Pessoa atua como uma voz crítica, apontando as contradições de Reis (118, 274) e reforçando com sua presença, como intruso do mundo real, o jogo lúdico e metaléptico com as fronteiras ficcionais e a problematização da figura do autor e do seu papel na construção de narrativas nacionalistas. É igualmente importante para o desenvolvimento de Reis a relação com Lídia, musa do heterônimo figurada na narrativa como uma criada de hotel com quem Reis tem um caso amoroso, e a relação com Marcenda, gerúndio que aparece em outro poema de Ricardo Reis e que, no romance, dá nome a uma jovem com uma deficiência no braço esquerdo, atrás de quem Reis vai numa viagem inusitada e frustrada a Fátima.  

Sendo Ricardo Reis o protagonista e seu retorno a Lisboa o fio condutor da narrativa, é sobretudo no plano discursivo que os traços, as incoerências e as transformações da personagem se consolidam e são colocados em causa. As deambulações de Reis pelo labirinto das ruas de Lisboa, seus relacionamentos, sua composição poética, a investigação que a polícia política efetua a seu respeito, sua leitura de jornais, enfim, cada gesto seu é comentado por uma instância narradora forte que metalepticamente se deixa ver, que confronta esse anti-herói e conduz seu destino. Disso resulta o caráter metaficcional do romance, que recupera diversas outras referências literárias – Camões, Eça de Queirós, Garrett, Cesário Verde etc. –, e coloca Ricardo Reis como leitor de Herbert Quain, um misterioso autor irlandês que provém da criação de Borges (1974). É este livro, The God of the Labyrinth, o objeto que Reis escolhe levar consigo quando, ao final do romance, impactado e desiludido com os últimos acontecimentos políticos, decide acompanhar Pessoa em sua partida definitiva para o além, deixando “o mundo aliviado de um enigma” (415). O gesto de Reis reforça a transficcionalidade e as transposições de níveis que estruturam o romance, que afirma a produtividade desse tipo de criação e nos lembra que, afinal, “este Ricardo Reis não é o poeta [...] E as pessoas nem sonham que quem acaba uma coisa nunca é aquele que a começou, mesmo que ambos tenham um nome igual” (51).

Graças à sua densidade intertextual e temática, assim como à sua elaborada composição narrativa, o romance já foi alvo de uma extensa fortuna crítica, com destaque para o trabalho pioneiro de Silva (1989), sobre as relações entre história e ficção. Desde 2014, o livro foi incluído no programa curricular do Ensino Secundário português, o que aumentou sua projeção, resultando em uma relevante produção bibliográfica de apoio (como Reis, 2017 e Arnaut, 2017) e em transposições intermediáticas, como as adaptações para o teatro realizadas por Hélder Mateus da Costa e Maria do Céu Guerra (2016) e por Filomena Oliveira e Miguel Real (2018). Em 2020, João Botelho realizou a adaptação cinematográfica do romance (produção: Ar de Filmes), com Chico Díaz no papel de Ricardo Reis.

 

Referências

ARNAUT, Ana Paula (2017). Para ler... O ano da morte de Ricardo Reis. Lisboa: Edições Asa.

BORGES, Jorge Luis ([1941] 1974). “Examen de la obra de Herbert Quain”, in Obras completas 1923-1972. Direção de Carlos V. Frías. Buenos Aires: Emecé Editores. 461-464.

REIS, Carlos (2017). O ano da morte de Ricardo Reis. Col. Educação Literária, 12.º ano. Porto: Porto Editora.

SARAMAGO, José ([1984] 1993). O ano da morte de Ricardo Reis. 10.ª ed., Lisboa: Caminho.

____ (1999). “As notas de Ricardo Reis”. Revista Ler. 44: 106-115.

SILVA, Teresa Cristina Cerdeira da (1989). “O ano da morte de Ricardo Reis: entre o fingir e o existir nos labirintos da história”, in José Saramago entre a história e a ficção: uma saga de portugueses. Lisboa: Publicações Dom Quixote. 103-192.

Sara Grünhagen