Raimundo Benvindo Silva é o protagonista da História do Cerco de Lisboa (1989), de José Saramago. Uma personagem fragmentada que reflete o homem contemporâneo, cuja ipseidade se aperfeiçoa num processo de aprendizagem. A sua mutabilidade identitária permite um dinamismo que admite “o sentido de mudança que um trajeto de vida implica” (Reis, 2018: 203) e a construção do seu palimpsesto literário.
Um homem “magro, sisudo” (Saramago, 2014: 311), “tímido por natureza ou feitio” (189), de origem humilde, de gostos arreigados, com uma “gula insofreável” (57) por torradas, sem família direta, com 50 anos, “triste como um cão sem dono” (311), vive uma vida modesta e sedentária, numa casa sem conforto. É solteiro e solitário, sendo que “a única coisa que sente próxima de si é a prova que estiver a ler” (35), demonstrando a falta íntima de afetividade. A aparente solitude da personagem deixa transparecer a profundidade da sua solidão.
Raimundo é uma espécie de filósofo autodidata, “eterno insatisfeito” (10) e perfecionista, que escreve “pareceres excelentes, bem pensados e bem escritos” (114). Apesar de ser mal remunerado, trabalha, com deleite, por amor à profissão, embora assuma o seu ceticismo amargo e considere a vida uma tragédia. Trata-se de um profissional multifacetado, empenhado num labor irrepreensível, rigoroso e metódico, representativo da sua competência profissional; evita distrações, o que reflete preparação intelectual e um conhecimento escrupuloso. Além disso, embora seja muito desorganizado, assume uma imutável dedicação, configurando uma imagem de credibilidade. A sua retidão de caráter provoca-lhe indignação perante “certas hipocrisias, certas invejas, certas infâmias” (240).
Este revisor editorial minucioso e experiente é detentor de um vasto saber livresco e gosta de executar o seu trabalho atempadamente, possuindo um olhar analista e criterioso, de modo a corrigir as imperfeições da linguagem. Esta tarefa complexa torna-o uma “interrogação com pernas e uma dúvida com braços” (14). O aprimoramento dos textos exige-lhe acuidade, sagacidade, bom-senso e sensibilidade, daí que os traços impressivos da sua personalidade tenham advindo dos “livros que reviu” (164).
Um dia, ao fazer a revisão da História do cerco de Lisboa, Raimundo fixa o seu olhar numa “página onde se encontram consignados (…) inabaláveis factos da história” (49); fica tão agitado que não consegue passar a linha em que “redondamente [se] afirma que os cruzados auxiliarão os portugueses a tomar Lisboa” (49). Num ímpeto subversivo, transgride as normas, o código deontológico e a ética, ao acrescentar um Não, “com letras carregadas, bem desenhadas” (88), comprometendo a reputação e “honrada vida profissional” (51), ao “pôr em causa, como se viu, a chamada verdade histórica, pelo poder da linguagem” (Reis e Grünhagen, 2023: 78), enveredando pela metaficção historiográfica.
A partir desse momento, sente-se atormentado pelas consequências da “fraude deliberada, premeditação maliciosa, incitamento à perversão” (63). Passados treze longos dias de desorientação e aflição, a editora descobre o logro e convoca-o para uma reunião, na qual é repreendido. Enquanto espera, um pequeno livro de poesia liberta-o, por instantes, dos desassossegos que o dominam, dando-se à arte poética um poder redentor. Quebrada a confiança, o diretor literário comunica-lhe que será monitorizado por uma mulher, o que o deixa desconcertado e inseguro, sem palavras que pudessem explicar satisfatoriamente o sucedido.
Passada a situação embaraçosa da reprimenda, Raimundo inicia uma caminhada de autoconhecimento e autoanálise. A mulher que acaba de conhecer povoa os seus pensamentos, invadindo a sua monótona existência. Posteriormente, entra numa crise identitária, pinta o cabelo, tentando eliminar as marcas inexoráveis da passagem tempo, mas o efeito do ato traz-lhe uma sensação de artificialismo vergonhoso. A sua angústia aumenta quando se aproxima o momento do reencontro com a figura feminina, quando toma conhecimento dos “trâmites do trabalho de revisão” (111).
O erro voluntário impulsiona o nascimento de uma nova história, a “constituição de uma outra «verdade», esta suscitada pela ficção (…) contada por Raimundo Silva, em resposta a uma sugestão de Maria Sara” (Reis e Grünhagen, 2023: 78), já que o revisor inicia um trabalho de releitura e de reescrita, para defender a sua “heterodoxa tese” (194), relativizando a verdade histórica com a sua mente criativa e oscilando entre “as dificuldades do cerco e as futilidades do romance” (199). A mudança de Raimundo permite-lhe um certo crescimento, uma abertura espiritual e uma alomorfia física e psíquica, já que o invisível revisor se torna o inquieto autor, que efabula, conscientemente, a sua própria veracidade, em “escrita lenta” (161), enveredando pelo fingimento artístico como processo para alcançar a ficcionalização da história. A evolução do “eu” e da sua sensibilidade acompanha o aprimoramento da escrita.
Este ser antiquado e inexperiente no amor sente-se amedrontado pelo sentimento de rejeição, enciumado e enfeitiçado, titubeando na presença da superiora hierárquica, hesitante e reticente em relação a Maria Sara; uma tal atitude propiciava, inicialmente, um silêncio constrangedor entre ambos e alguma irritabilidade, escondendo uma certa sensação de inferioridade. Contudo, depois de vencer as inseguranças que agitavam o seu interior, Raimundo declara-se. A partir de então, a mulher assume um ascendente empático sobre Raimundo, fazendo-o atingir um efetivo desenvolvimento pessoal, pautado pela autoconfiança, pela autoestima e pelo autoconceito.
O relacionamento amoroso evolui, após “um beijo total, intenso, ansioso” (284), “uma vibração convulsiva e contínua de todo o seu ser” (302). Esta união metamorfoseia-o, fazendo-o trilhar um caminho de autoconhecimento e de equilíbrio emocional. Assim, projeta-se “sobre o trabalho de revisão ficcional dos acontecimentos e das figuras históricas uma dimensão humana, de interpelação, de afeto e de instigação que alimentam a escrita da «história nova»” (Reis e Grünhagen, 2023:78), porque “o amor será não haver mais barreiras” (345), num mundo onde “cada um de nós cerca o outro e é cercado por ele” (345) e no qual “queremos deitar abaixo os muros do outro e continuar com os nossos” (345). Encontrar Raimundo é sentir a presença do autor como transfigurador do mundo, porque “há muito [nele] de [seu]” (Reis, 2015:141).
Em 2017, o romance História do Cerco de Lisboa deu lugar a uma peça, adaptação de José Gabriel Antuñano e encenação de Ignacio Garcia, uma coprodução ACTA- A Companhia de Teatro do Algarve, Companhia de Teatro de Almada, Companhia de Teatro de Braga e Teatro dos Aloés.
Referências
REIS, Carlos (2015). Diálogos com José Saramago, Porto, Porto Editora.
REIS, Carlos (2018). Dicionário de Estudos Narrativos. Coimbra: Almedina.
REIS, Carlos e Sara GRÜNHAGEN (2023). O essencial sobre José Saramago. Lisboa: Imprensa Nacional.
SARAMAGO, José (2014). História do Cerco de Lisboa. 11.ª ed., Porto: Porto Editora.