Personagem central do romance História do cerco de Lisboa (1989), de José Saramago, Maria Sara representa uma heroína bem ao gosto do autor, com “a humanidade desejada”, mostrando-se “robusta tanto na alma como nas suas ações” (Gómez Aguilera, 2010: 277).
Esta mulher forte, íntegra e independente entra no romance e na vida de Raimundo Silva ao mesmo tempo. Trata-se de uma figura feminina bem identificada, “ainda nova, menos de quarenta anos”, cujo retrato apresenta “olhos castanhos” (Saramago, 2014: 101), “pele mate, os cabelos castanhos” (92), com alguns “fios brancos que brilhavam sob a luz do teto”(109), uma “boca cheia, carnuda, mas os lábios não são grossos” (92), possui um “tom de voz natural” (109) e veste-se bem. É divorciada, vive “em casa de um irmão” (245) e não tem descendência, embora deseje experienciar a maternidade.
Maria Sara, designada como “a doutora”, “é uma pessoa moderna e despachada” (116), com objetivos bem definidos e inteligentes, que desempenha um papel de destaque como profissional qualificada, demonstrando a sua formação e a exigência relativa às funções laborais, assumindo pró-ativamente a responsabilidade de coordenar os revisores. Sendo impulsionadora de uma liderança transformacional, influencia o percurso de vida de Raimundo, impulsionando-o a adotar novos comportamentos e a repensar a visão que tinha de si mesmo, o que provoca o fortalecimento do seu capital humano. Tornando-se uma espécie de mentora confidente, Maria Sara potencia o desenvolvimento da autoestima, da coragem, da resiliência e da ousadia. Nesta travessia existencial, vai alterando o modus vivendi do revisor, fazendo nascer mele um autor empoderado da sua liberdade.
Maria Sara representa uma mulher emancipada que não se coaduna com a defesa da domesticidade feminina, mostrando a sua independência financeira. Assim, realiza-se como pessoa, manifesta os próprios sentimentos e toma decisões consentâneas com os seus desejos. A sua sabedoria permite-lhe ocupar uma posição importante não só como detentora de uma carreira de sucesso, enquanto superiora hierárquica, mas também potenciando a aventura existencial e emocional de Raimundo, com o qual vive um relacionamento amoroso genuíno e transfigurador. Trata-se de uma personagem que assume o protagonismo e as rédeas da sua vida a todos os níveis, incitando reflexões sobre o papel da mulher na modernidade, “quer no que se refere ao contexto histórico-social quer no que se refere ao relevo que desempenhará na (in)formação e desenvolvimento afetivo, moral e ideológico do universo masculino” (Arnaut, 2007:3), sendo retratada como alguém multifacetado que não sente qualquer tipo de inferiorização em relação ao homem.
Curiosamente, torna-se visível a complexidade da figura quando revela que “as pessoas de livro são personagens” (273), dada a sua autonomia, “um tema que não implica apenas o seu trajeto como figura ficcional, mas também o diálogo por ela estabelecido com o autor” (Reis e Grünhagen, 2023: 102). Esta revela-se como “porta-voz autoral” (Reis e Grünhagen, 2023: 103), incentivando Raimundo no processo artístico, designadamente na escrita de um romance.
Pela sua natureza, Maria Sara afigura-se inspiradora em muitos momentos ao longo da diegese. Ela encerra em si um vigor para a valorização dos relacionamentos, sem hierarquizações injustas nem limitações psíquicas ou físicas da conduta feminina, sendo dona da sua sexualidade sem repressões convencionais ou hipocrisias e quebrando tabus em relação ao amor. Apresenta, assim, uma capacidade extraordinária de mudar o mundo dos que têm a sorte de privar com ela. Ao desenvolver a sua própria individualidade e afetividade, Maria Sara entra no universo masculino, para revitalizar animicamente Raimundo.
Em 2017, o romance História do Cerco de Lisboa deu lugar uma peça de teatro, adaptação de José Gabriel Antuñano e encenação de Ignacio Garcia, uma coprodução ACTA - A Companhia de Teatro do Algarve, Companhia de Teatro de Almada, Companhia de Teatro de Braga e Teatro dos Aloés. Além disso, em 2022, a figura feminina esteve representada na exposição de serigrafias e gravuras inéditas de artistas portugueses, «Mulheres Saramaguianas», integrada no programa oficial do Centenário de José Saramago.
Referências
ARNAUT, Ana Paula. "José Saramago: a literatura do desassossego". Acesso em: 05 de maio 2024. Disponível em: www.ufs.ac.jp/Brazil/03docentes/Arnaut.pdf .
GÓMEZ AGUILERA, Fernando (2010). José Saramago nas suas palavras. Alfragide: Caminho.
REIS, Carlos e Sara GRÜNHAGEN (2023). O essencial sobre José Saramago. Lisboa: Imprensa Nacional.
SARAMAGO, José (2014). História do Cerco de Lisboa. 11.ª ed., Porto: Porto Editora.
[publicado a 15-03-2024]