• Precisa de ajuda para encontrar algum conteúdo?

Projeto de Investigação Figuras da Ficção

1. Objetivos

O projeto de investigação "Figuras da Ficção" assume como propósito central o estudo da personagem ficcional, como categoria fundamental do discurso literário e especificamente dos textos narrativos ficcionais. Esse estudo será desenvolvido, conforme adiante se verá, tendo-se em atenção diversos critérios de abordagem e diferentes parâmetros de existência da personagem ficcional. Derivadamente, o projeto contemplará também relações transliterárias que a personagem ficcional permite, tendo em conta a sua existência noutros discursos, designadamente não literários. No seu termo final, o projeto "Figuras da Ficção" perspetiva conceber e elaborar um dicionário de personagens, em dimensão, formato e alcance a definir.

2. Âmbito

O âmbito fundamental do projeto de investigação é a personagem literária, tal como tem sido elaborada na literatura ocidental, desde que a narrativa literária – e em especial o romance – assumiu a relevância institucional e o índice de aperfeiçoamento estético que lhe são reconhecidos. De um ponto de vista histórico, a personagem de que aqui se trata é a que se encontra representada sobretudo na literatura portuguesa, desde finais do século XVIII e até aos nossos dias, num lapso temporal de cerca de dois séculos. É nesse lapso temporal que se encontram as grandes narrativas em que se processou a afirmação e a consolidação da personagem.

Falar em Figuras da Ficção obriga-nos, por outro lado, a uma mais precisa definição do âmbito de desenvolvimento deste projeto. Entendendo-se aqui a questão da figuração numa aceção deliberadamente plurissignificativa e com conotações que remetem para uma retórica da narrativa, ela corresponde sobretudo a procedimentos de formulação discursiva e ontológico-narrativa que se inscrevem em três domínios:

- O domínio da semântica da ficção, tendo que ver com a problemática da constituição de um certo tipo de entidades ficcionais (as personagens), cuja autonomização literária não dispensa uma reflexão acerca dessa constituição. Incluem-se aqui os movimentos de interacção entre mundo real e mundos possíveis ficcionais, bem como os inerentes procedimentos de modelização.

- O domínio da História ou mais especificamente da história literária, numa aceção moderna e teoreticamente consistente que remete sobretudo para o tratamento e reelaboração da personagem, tendo-se em atenção mutações periodológicas, transformações histórico-culturais e oscilações ideológicas. É nesse contexto de mudanças que a personagem ficcional deve ser encarada como categoria eminentemente dinâmica e valorizada nessa sua condição; e assim, em termos muito genéricos, pode afirmar-se que do Romantismo ao Pós-Modernismo a personagem conhece transformações e reajustamentos que fortemente afetam a sua configuração e o potencial semântico-pragmático que é próprio dela.

- O domínio da genologia, entendido como campo de reflexão autónomo em que são observáveis os tratamentos a que a personagem ficcional é submetida, de acordo com a sua inscrição (com a sua figuração) em géneros narrativos específicos. Desdobra-se este campo de reflexão pelo menos em dois subdomínios: o que se reporta aos géneros narrativos usualmente entendidos como géneros literários (romance, conto, novela, etc.) e o que se refere aos géneros narrativos não necessariamente literários, mas com os primeiros relacionados (biografia, autobiografia, memórias, etc.) por relação de confrontação ou de contaminação arquitextual.

Em termos sintéticos, pode dizer-se que os domínios de trabalho que assim se definem apontam para a releitura e mesmo para a eventual reformulação da teoria da personagem, em articulação com a constituição de uma história da personagem, naquilo que à literatura portuguesa diz respeito.

Ao mesmo tempo, os domínios fixados não anulam a possibilidade (aqui entendida como hipótese de trabalho colateral, mas também relevante) de uma extensão da teoria e da história da personagem a práticas discursivas e mediáticas do nosso tempo: o cinema, a televisão, a banda desenhada, etc. Essas práticas são tanto mais interessantes quanto é certo que não raro elas exibem uma discreta ou manifesta matriz literária (por ex., no caso das adaptações).

3. Enquadramento metodológico

A demarcação de campos de acção autónomos a que acima se procedeu envolve atitudes operatórias diretamente conexionadas com certas orientações metodológicas e epistemológicas que aqueles domínios convocam. Contudo, parece pertinente estabelecer, de forma agora mais explícita, marcos de referência metodológica autónomos que, desejavelmente em relação de complementaridade, orientem os rumos da pesquisa.

Assim e conforme é em geral reconhecido, a narratologia facultou, nas últimas três décadas, instrumentos de análise e de reflexão teórica que são fundamentais num projeto de investigação como o presente. Com tudo o que nela se encontra de problematização dos procedimentos significativos e comunicativos atinentes às grandes categorias da narrativa, a narratologia constituirá ainda uma matriz de referência deste projeto; e isto apesar de se reconhecer que os fundamentais investimentos a que ela procedeu, pelo menos nos seus primórdios, incidiram sobre categorias do discurso. Seja como for, a narratologia continua a constituir um domínio de referência inevitável neste contexto; derivadamente, a matriz narratológica completa-se com contributos recentes, em especial os que provêm da chamada narratologia “natural” e que desaguam no amplo e multidisciplinar campo dos estudos narrativos, campo em que se assiste a uma clara revalorização da personagem. Sublinha-se, então, que um momento importante do relançamento deste projeto será constituído pelo labor de actualização de conhecimentos que este campo de produção teórica requer, incluindo incursões por conceitos (figura e figuração) inscritos na denominação e na conceptualização de onde este projeto arranca.

Ao mesmo tempo, reconhece-se que uma indagação em torno da personagem ficcional não pode ignorar a dimensão transnacional e transliterária de uma tal categoria. Sem prejuízo daquilo que o desenvolvimento da investigação venha a sugerir, abrem-se aqui, pelo menos, duas pistas de trabalho autónomas:

- A pista da comparatística, com tudo o que ela implica de potencial de correlações entre diferentes manifestações da categoria personagem, em diversas literaturas, autores, épocas e textos, previsivelmente com o propósito de observar reformulações de sentidos, reelaborações de tipos, trânsitos temáticos ou reinterpretações de mitos; o domínio particular da tematologia constitui aqui um campo de trabalho eventualmente fecundo, estando em causa não tanto questões genéticas, em clave psicanalítica ou afim, mas sim procedimentos de estruturação e de circulação temática centrados na personagem ou expressamente decorrentes dela. A necessidade de se incutir rigor operatório a procedimentos facultados nas últimas décadas pela teoria da literatura comparada exigirá adequada problematização teórica.

- A pista dos estudos culturais, contemplando uma indagação, em regime interdisciplinar e com reconhecida finalidade ideológica; nesse sentido, trata-se de estabelecer os nexos possíveis entre a teoria e a prática da personagem, tal como foi consagrada por uma longa tradição literária per se e, por outro lado, o que dessa tradição sobrevive ou incide sobre práticas culturais modernas e pós-modernas: cinema e televisão sobretudo, porque em ambos se enunciam relatos autonomizados em função de processos semiodiscursivos próprios, mas relacionáveis com a semiose literária; em segunda instância, outras manifestações, não raro enraizadas em práticas culturais e subliterárias do século XIX, como a literatura cor-de-rosa, a chamada literatura light ou pop, os romances de aventuras, a ficção científica, a imprensa popular, a publicidade, a moda, etc. Em qualquer caso, deve sempre subsistir, como critério de análise inderrogável, a valorização da personagem enquanto entidade que se sustenta e representa em função de uma determinada produção discursiva.

Num outro plano de reflexão, o estudo da personagem cruza-se com os contributos facultados por dois grandes e às vezes heterogéneos domínios de estudo:

- O domínio dos estudos pós-coloniais, como resultado da emergência de sentidos e de atitudes de revisão da História, em conexão com específicas mutações geopolíticas. Em parte ocorridas na sequência da Segunda Guerra Mundial, essas mutações relacionam-se directamente com processos de descolonização e com a contestação da hegemonia ocidental (em particular europeia) e da sua vocação imperialista, também no plano da axiologia estética. A inscrição da personagem ficcional nesta vasta problemática é legitimada pelo significado assumido por diversas narrativas ficcionais (nalguns casos empenhadas numa revisão pós-modernista da História); mas a valorização da personagem é legitimada também pela sua condição de foco de representação de tensões históricas e ideológicas de índole pós-colonial, sem desqualificação da sua condição de categoria estética. Previsivelmente, estará aqui em causa sobretudo a literatura portuguesa posterior à descolonização, particularmente aquela que de uma forma ou outra tematiza a questão da identidade nacional e os seus avatares.

- O domínio dos estudos femininos, com exata definição do âmbito de análise determinado por uma investigação centrada na personagem ficcional. Sem ignorar as origens, desenvolvimento e processo de integração académica dos estudos femininos, o estudo da personagem será aqui equacionado em função das convenções de género (“gender”) que interferem na composição da personagem, concretizada num certo contexto de género (agora numa perspetiva genológica). Parte-se, então, da pressuposição de que aquelas convenções estão envolvidas tanto no plano da representação como no da receção, sendo àquele que se confere prioridade. Noutros termos: tratar-se de ponderar os termos em que a personagem feminina, dinamicamente relacionada com outras categorias narrativas e remetendo para questões de ordem formal (uma certa estilística dos textos, do ponto de vista de uma enunciação de autoria feminina), modeliza a diferença de uma cultura feminina, objecto de indagação estético-literária, mais do que de problematização sociológica ou puramente ideológica.

4. Aberturas

Desenvolvendo-se no âmbito do Centro de Literatura Portuguesa da Faculdade de Letras da Universidade de Coimbra e integrando no seu programa de trabalho investigadores adstritos àquela unidade de investigação, o projeto "Figuras da Ficção" abre-se a campos literários e a investigadores de outras universidades e países. Assim, embora contemplando, em primeira instância, a literatura portuguesa como grande área de atuação, o projeto deverá proceder a extensões que abarquem também, em perspectivas metodológicas a isso ajustadas, outras literaturas de língua portuguesa. Tal abertura terá certamente reflexos no âmbito de alcance a fixar para o dicionário de personagens que é o termo de chegada do projeto.

5. Atividades e resultados

Até agora, podem-se destacar, para além da publicação de mais de cinquenta verbetes de personagens:


• Em 2017 (20, 21 e 22 de novembro) realizou-se o 5.º Colóquio Internacional Figuras da Ficção: Dinâmicas da Personagem, em que se privilegiaram reflexões sobre a vitalidade transliteraria da personagem e os movimentos de refiguração que ela motiva. Destaca-se o caráter trans e interdisciplinar das discussões que contemplaram, para além da literatura, em várias épocas e géneros narrativos, o cinema, as artes plásticas, a televisão, a publicidade, os discursos mediáticos ou os jogos eletrónicos.


• No decorrer do ano letivo 2018-2019, realizaram-se, além disso, cinc workshops organizados tematicamente, sempre numa perspetiva teórico-prática. No primeiro, "The Ghost in the Machine!: ludologia, narratologia e reinvenção da personagem na ficção interativa (Paulo Pereira); no segundo, Carlos Reis apresentou sinteticamente os elementos teóricos norteadores do Dicionário de Estudos Narrativos; no terceiro, Miguel Koleff fez uma reflexão a partir de sua experiência com o Diccionario de personajes saramaguianos (2008) sobre as “Personagens saramaguianas em Levantado do chão” seguido de Sara Grünhagen que apresentou a análise “Ricardo Reis, personagem transficcional” (que se desenvolveu na produção do verbete Ricardo Reis); no quarto, quatro colaboradores do projeto compartilharam suas reflexões sobre personagens queirosianas: Ana Márcia Siqueira, “Teodoro entre o ser e o parecer”; Giuliano Lellis Ito Santos, “O Conselheiro Acácio nas páginas dos jornais cariocas”; Ana Luísa Vilela, “Uma adúltera diferente: a primeira Luísa” e Maria do Rosário Cunha, “Para a dicionarização de Leopoldina”.


• Relacionadas com o projeto, podem-se destacar, por fim, as seguintes publicações: o volume 4 (2014) da Revista de Estudos Literários, com o título genérico, Personagem e Figuração, organizado por Carlos Reis e Marisa das Neves Henriques; o livro Pessoas de livro. Estudos sobre a personagem (em acesso livre), de Carlos Reis, e o Dicionário de Estudos Narrativos, do mesmo autor.