Musa da poética horaciana de Ricardo Reis, Lídia torna-se, com José Saramago, Lídia Martins, camareira do Hotel Bragança e amante de um hóspede com os traços e a biografia do heterônimo de Fernando Pessoa. Em O ano da morte de Ricardo Reis, publicado em 1984, Lídia ganha, portanto, um sobrenome, uma profissão e uma história de amor, exercendo um papel importante na dinâmica da narrativa. Figurada a partir de sua relação com o protagonista do livro, essa personagem secundária é essencial tanto para a prosificação de Ricardo Reis, também transformado em personagem de romance, quanto para a confrontação do conhecido alheamento voluntário de seu amante: Lídia vai, afinal, obrigar Reis a olhar para além do seu próprio mundo.
Como a personagem de Fernando Pessoa, mas atuando somente no mundo dos vivos, Lídia é uma presença constante na narrativa, que acompanha Ricardo Reis do início ao fim do livro. Ela surge logo no segundo capítulo, apresentada pela sua função de criada no hotel em que Reis acabara de se instalar. Sua caracterização é marcada por um contraste intertextual com a musa da poesia: assim que a conhece, e surpreendido com o nome dela, Reis vai buscar seus poemas, “lê alguns versos apanhados no passar das folhas, [1] E assim, Lídia, à lareira, como estando, [2] Tal seja, Lídia, o quadro, [3] Não desejemos, Lídia, nesta hora, [4] Quando, Lídia, vier o nosso outono, [5] Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira-rio, [6] Lídia, a vida mais vil antes que a morte” (Saramago, 2016: 51). Comentada em diferentes momentos da narrativa – “o que é incongruente, sendo criada, é chamar-se Lídia, e não Maria” (62) –, a coincidência do nome parece criar um fio invisível entre Reis e Lídia, assim como entre o romance e a obra de Pessoa, e não tardará para que se estabeleça uma relação entre as duas personagens, apesar das suas diferenças sociais.
Lídia vai se desenvolver, então, sobretudo por comparações; “mulher nascida do povo” (62), “filha de pai incógnito” (200), ela tem uma “mão castigada de trabalhos, áspera, quase bruta, tão diferente das mãos de Cloe, Neera e a outra Lídia” (193). Ela é construída como o oposto de Marcenda, também hóspede do Hotel Bragança, moça de família, mais nova, mais culta, mais rica, e que aos olhos de Reis surge como um partido mais apropriado, tendo em vista as “relutâncias” e os “preconceitos” daquele (303). Seus traços físicos contrastam igualmente com a fragilidade de Marcenda: com “seus trinta anos”, ela é uma “mulher feita e bem feita, morena portuguesa, mais para o baixo que para o alto” (95). Ambas as mulheres, porém, são fortes quando comparadas a Ricardo Reis: com frequência, são elas que tomam a iniciativa e vão até ele, não raro se arriscando ao fazê-lo. Lídia vai se destacar nesse sentido, superando condicionantes da personagem-tipo a que se associa, a de mulher simples tendo um caso com um “senhor doutor” (50), uma espécie de “aia de Ana Karenine” que “serve para arrumar a casa e para certas faltas” (385). Lídia, porém, é subalterna apenas na forma. Ela é inteligente e habilidosa (62), ela sabe o que quer e quando o quer (108), ela é corajosa e assume sozinha os desafios do futuro mesmo quando caberia a Ricardo Reis tomar parte na responsabilidade (420-3). Lídia ama e deseja; ela é, pois, feita de carne e osso, “afortunada, porque a dos versos nunca soube que gemidos e suspiros estes são, não fez mais que estar sentada à beira dos regatos, a ouvir dizer, [7] Sofro, Lídia, do medo do destino” (119-20).
Em termos políticos, Lídia também é o oposto de Ricardo Reis, monárquico, com “sina de andar a fugir das revoluções” (90), sem acreditar “em democracias” e aborrecendo “de morte o socialismo” (154). Pelo seu irmão Daniel Martins, “marinheiro do Afonso de Albuquerque” (200), leitor do jornal clandestino O Marinheiro Vermelho e, portanto, comunista (388), ela está mais bem informada do que Reis sobre a “má fama” e as “obras piores que a fama” (201) da polícia política que o convocou e que ficará no seu rasto até o final da narrativa. O convívio com Lídia chama a atenção de Reis para uma classe social que lhe é estranha, assim como para uma luta de que ele se desejaria o mais distante possível. Com Daniel, Lídia encarna um grupo oprimido pelo sistema ditatorial do tempo da narrativa (1935-1936), grupo este que aprendeu a desconfiar do discurso oficial. Essa postura vai contrastar com o modo passivo com que Reis lê o mundo: “não se deve fazer sempre fé no que os jornais escrevem, [...] uma coisa eu aprendi, é que as verdades são muitas e estão umas contra as outras” (463). Diferentemente de Reis, e mostrando-lhe, Lídia entende quem é, o lugar que ocupa e as incoerências que vive: “o povo é isto que eu sou, uma criada de servir que tem um irmão revolucionário e se deita com um senhor doutor contrário às revoluções” (446).
A histórica revolta dos marinheiros de 8 de setembro de 1936, em pouco tempo sufocada, e que no romance resulta na morte de Daniel, marca o desfecho da narrativa e a partida de Ricardo Reis, que deixa para trás Lídia e o filho que ela carrega no ventre. Em Lídia, no povo que ela encarna e na geração que ela ajudaria a gestar parece haver um vislumbre do final feliz, ou ao menos do futuro, que esta história, naquele tempo, não poderia ter. Seu último encontro com Reis será, pois, sugestivo dessa possibilidade de outra narrativa: “Lídia desceu a escada, contra o costume foi Ricardo Reis ao patamar, ela olhou para cima, ele fez-lhe um gesto de aceno, ambos sorriram, há momentos perfeitos na vida, foi este um deles, como uma página que estava escrita e aparece branca outra vez” (482).
Na adaptação para o cinema de João Botelho, O ano da morte de Ricardo Reis (2020) traz Catarina Wallenstein no papel de Lídia.
Referência
SARAMAGO, José ([1984] 2016). O ano da morte de Ricardo Reis. 25.ª ed, Porto: Porto Editora.
[publicado a 17-06-2020]