Indissociável da história religiosa, iconográfica e literária que fez a sua fama, Jesus é uma das personagens mais complexas de José Saramago, protagonista, como Ricardo Reis, de um romance construído a partir de um conjunto de referências sobretudo textuais que são revisitadas e recriadas em detalhes, nesse processo convocando o leitor a uma reflexão crítica sobre o universo de partida tanto quanto sobre a construção de narrativas, heróis, mitos e divindades.
Publicado em 1991, O evangelho segundo Jesus Cristo busca vincular-se, desde o seu título remático, a um gênero literário muito específico que visa à narração da vida, dos ensinamentos e da doutrina de Jesus. Expandindo a sua história no que poderia ser chamado de um exercício de Midrash, característico de alguns livros bíblicos (Goulder, 1974), Saramago serve-se das mesmas estratégias dos evangelhos, recorrendo ainda a referências e figuras do Antigo Testamento (a Bíblia Hebraica) para reinventá-las e interpretá-las à luz de outro tempo e de outros princípios, com propósitos inevitavelmente diferentes daqueles dos originais. Se na forma e mesmo no conteúdo há muitos pontos de contato com a tradição bíblica canônica e apócrifa, o que mais se destacará e será mesmo alvo de polêmicas bem conhecidas é a sua recriação problematizadora de Jesus e de alguns episódios-chave da sua vida.
A especificidade da personagem redesenhada por Saramago está já no seu nome, que não recebe a designação Cristo senão no título do romance. É a figura humana, pré-cristianismo, que interessa ao escritor, o que explica o fato de ele quase não referenciar outros livros neotestamentários para além dos evangelhos. Não obstante, a personagem da tradição cristã também é convocada, mormente no primeiro capítulo, que corresponde a uma descrição de uma xilogravura atribuída a Albrecht Dürer (1471-1528), uma das várias crucificações de Cristo feitas por ele e/ou por seu ateliê. Embora seja o centro da composição, Jesus, “o único a quem o futuro concederá a honra da maiúscula inicial” (Saramago, 2016: 16), é uma das últimas figuras a ser apresentada, e o movimento circular que conduz a interpretação da gravura reflete aquele do livro, que começa e termina com a cruz. Conforme Saramago, toda essa primeira descrição minuciosa, igualmente importante para a introdução de outras personagens, com destaque para Maria de Magdala, tem um sentido: “é como se eu dissesse aqui está a representação tópica deste acontecimento, agora vamos contar a história” (in Vasconcelos, 1991: 10).
Tal história não se norteia pelos pressupostos da centralidade e da divindade de Jesus, figurado como uma personagem colocada num enredo pré-estabelecido, sobre o qual ele não tem nenhum controle e de que tentará escapar, sem sucesso. Ao menos até à vida adulta – ou até ao chamado início do seu mistério –, não parece haver nada de verdadeiramente milagroso na sua existência; mesmo a sua mãe, que recebera a visita misteriosa de um mendigo-anjo a anunciar-lhe o nascimento, “não vê mais do que uma criança igual às outras, baba-se, suja-se e chora como elas, a única diferença é ser seu filho, os cabelos são pretos como os do pai e da mãe, as íris já vão perdendo aquele tom branquiço a que chamamos cor de leite não o sendo, tomam o seu próprio natural, o da herança genética direta, um castanho muito escuro” (127-128).
Pouco mais é dito sobre os traços desse menino de pele “morena” (228), consoante a pintura mais fidedigna da época e das personagens que Saramago se propõe a fazer. Como é comum no seu processo de caracterização, há uma escassez proposital de detalhes e descrições, principalmente quando não se estabelece um diálogo com determinada representação imagética: “perguntaram se ali estivera ou por ali tinha passado um tal Jesus de Nazaré, que é nosso irmão, de figura assim assim, modos assim assado” (319).
O percurso narrativo de Jesus é marcado por viagens, buscas e encontros. De Belém a Nazaré, passando por Jerusalém, Séforis, Magdala, Caná, Betânia etc., toda uma geografia bíblica é recuperada nas andanças de Jesus pela Palestina do primeiro século desta era, acompanhado primeiro pelos pais, depois por Pastor, o mesmo anjo-demônio que anunciara o seu nascimento, seguido por Maria de Magdala e por discípulos amigos. A partir do capítulo doze, quando o narrador metaléptico de Saramago passa a dar uma “atenção exclusiva” a Jesus (221), desenvolve-se uma trajetória de autorreconhecimento do protagonista sobre o seu estatuto de personagem comandada por Deus, de cujos designíos discordará.
Ainda adolescente, depois de perder o pai, crucificado com a emblemática idade de 33 anos no contexto das revoltas judaicas contra o império romano, Jesus parte em busca de respostas sobre si e sobre a culpa que atormentava José, de quem herda um sonho sobre a matança dos inocentes comandada por Herodes. Após o episódio com os doutores do Templo em Jerusalém, a que se segue um encontro inusitado, em Belém, com a sua parteira Zelomi – figura emprestada do apócrifo Evangelho do Pseudo Mateus –, Jesus vive cerca de quatro anos como aprendiz de Pastor, até o dia em que Deus se lhe apresenta no deserto e anuncia-lhe um destino “de ventura suprema” (263). O confronto com Deus, e a plena compreensão do significado daquele destino, só virá algum tempo depois, após uma breve existência como pescador, entre aprendizados, milagres e o amor de Maria de Magdala.
Um segundo encontro revelador, desta vez entre Deus e o Diabo-Pastor numa barca bem vicentina, precipita os acontecimentos que culminam na morte de Jesus, que tem um vislumbre da história futura da religião criada em seu nome, das tragédias e dos mártires que dela decorrerão. Embora o filho do carpinteiro tente rejeitar a ação, e o protagonismo, que se lhe quer impor – “rompo o contrato, desligo-me de ti, quero viver como um homem qualquer” (371) –, a sua recusa se revelará inútil, como a narrativa vinha sugerindo e como o leitor pode supor, pelo conhecimento que tem do papel que essa personagem já estava exercendo e exerce nos evangelhos canônicos aos quais o texto constantemente remete.
O destino da personagem é dramático menos pelo seu fim conhecido e mais pelo que nele é mostrado como paradoxal: o sucesso da empreitada divina, com a morte do filho de Deus na cruz marcando a invenção do Cristo e da narrativa cristã, é ao mesmo tempo o fracasso de Jesus – e de quem quer que se identifique com ele, incluindo o narrador – em frustrá-la (Grünhagen, 2023: 227-438, 459-518).
A personagem é, portanto, uma categoria-chave e uma excelente porta de entrada deste romance de Saramago, cuja abordagem irreverente na sua apropriação do mito bíblico não lhe é exclusiva, inserindo-se numa já longa história de biografias ficcionalizadas e transfigurações ficcionais de Jesus (Ziolkowski, 2002). Em chave crítica já acentuada na Literatura Portuguesa, de Eça de Queirós a Fernando Pessoa, pode-se dizer que O evangelho segundo Jesus Cristo se alinha, enfim, aos conhecidos versos de Alberto Caeiro: “Esta é a história do meu Menino Jesus. / Porque razão (...) / Não ha de ser ella mais verdadeira que (...) / tudo quanto as religiões ensinam?” (Pessoa, 2018: 46).
Referências
GOULDER, Michael (1974). Midrash and Lection in Matthew: The Speaker’s Lectures in Biblical Studies 1969-71. Londres: SPCK.
GRÜNHAGEN, Sara (2023). A cor dos cabelos de Deus: a oficina de escrita de José Saramago. Lisboa/Coimbra: Fundação José Saramago/Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra.
PESSOA, Fernando (2018). Obra completa de Alberto Caeiro. Org. Jerónimo Pizarro e Patricio Ferrari. Rio de Janeiro: Tinta da China Brasil.
SARAMAGO, José (2016). O evangelho segundo Jesus Cristo. 35.ª ed. Porto: Porto Editora.
VASCONCELOS, José Carlos de (1991). “José Saramago: ‘Deus é o mau da fita’”. JL, n. 487, 5-11 nov. 8-10.
ZIOLKOWSKI, Theodore (2002). Fictional Transfigurations of Jesus. Eugene: Wipf and Stock.
[publicado a 07-07-2024]