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Mena Ataíde

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Mena Ataíde (José Cardoso Pires, Balada da Praia dos Cães)

Filomena Joana Van Niel Ataíde é uma personagem do romance Balada da Praia dos Cães (1982), de José Cardoso Pires. Juntamente com o arquiteto Renato Fontenova e o cabo Bernardino Barroca, personagens secundárias do romance, compõe o grupo de suspeitos na investigação do homicídio do major Luís Dantas Castro. Amante de Dantas Castro, a personagem, comumente referida como Mena, é baseada em uma figura real (assim como as outras envolvidas no crime), chamada Maria José Maldonado Sequeira. Destas quatro, porém, é “aquela onde a liberdade criadora de José Cardoso Pires é maior” (Rodrigues, 1983: 2).

Mena é a primeira capturada pela polícia no «caso Dantas Castro» e será interrogada pelo chefe de brigada da Polícia Judiciária Elias Santana. Assim, todos os esclarecimentos sobre o crime são feitos por ela, que se mostra colaborativa com a polícia. Mena assume ter sido cúmplice na fuga do major e do arquiteto, presos no Forte de Elvas, embora fosse a única que não manifestava qualquer motivação política nesta empreitada, auxiliando-os apenas pelo seu envolvimento emocional com o major. Fica detida para muitos interrogatórios, sob o pretexto de colaborar com a investigação do homicídio, ainda que seja revelado que a suspeita teria feito a confissão completa do crime no segundo interrogatório, admitindo a sua participação. Esta informação, associada a muitos indícios da obsessão de Santana por Mena, confirma que o investigador teria adiado intencionalmente a resolução do caso para continuar a interagir com a suspeita.

Sua caracterização é muito peculiar, pois é dada a partir do focalizador Elias Santana, que constrói sua imagem através do contacto direto com ela nos interrogatórios e da análise de objetos pessoais de Mena que ele ilegalmente coleciona. “Pelas fotografias apreendidas na busca da polícia, Elias adivinha esse corpo. Um corpo sumptuoso; e todo no concreto, cada coisa no seu lugar. […] Coxas serenas e poderosas.” (Pires, 1982: 28). Mena é uma figura fortemente sexualizada e, por isso, não é mostrada como um todo de contornos bem definidos, mas como partes do seu corpo que compõem a fantasia de Elias. Além disso, a narrativa do envolvimento de Mena no crime é impregnada de um registo que remete a um cliché de literatura erótica, assumidamente lida por Santana: “Lá fora era chuva e vento, e à volta deles havia manchas de roupa espalhadas pela sala, um sapato, um vestido a monte […]. Gargalhada de Mena: «Padre! Nunca pensei!» […] Otero: Você, Covas, só lê livros depravados. Elias: É.” (29).

Essa objetualização da mulher é uma questão social que a personagem suscita, não só na dinâmica com o voyeur Elias Santana, mas também com Dantas Castro. O major a submetia a diversas formas de violência, desde humilhações verbais até à agressão física e à tortura: “Pensando melhor acho que ele tencionava mesmo matar-me. […] As torturas, diz. Cada vez ia mais longe, tinha de acabar por me matar. […] Desde a cintura ao pescoço tinha as costas lavradas por queimaduras de cigarro, cinzentas, eriçadas” (217). As agressões eram motivadas principalmente por ciúmes, o que reitera a ideia de mulher-objeto, por implicar uma relação de posse.

É também possível ler que Mena representaria, ideologicamente, uma tentativa de libertação sexual da mulher, por não estar em conformidade com o papel que ela deveria desempenhar naquela sociedade – é amante de um homem casado, amigo do seu pai (104) – e pela influência de ideais progressistas – “Mena recorda-se dum romance da Simone de Beauvoir” (65). No entanto, sua narrativa integra um campo temático recorrente em José Cardoso Pires, que é a assimetria de poder nas relações entre homens e mulheres, mesmo entre uma jovem feminista e um militar oposicionista; ou entre uma assassina sem remorsos e um polícia solitário. “Em última instância, o que está em causa no confronto entre Elias Santana e Mena (como anteriormente entre Tomás Manuel e Maria das Mercês e entre João e Guida), é a impossibilidade de uma relação intersubjetiva (amorosa, nomeadamente) entre um homem e uma mulher” (Cabral, 1999: 238).

Outras dinâmicas transficcionais relativas a esta personagem podem ser notadas, por exemplo, na sua semelhança com Guida, de O Anjo Ancorado, estereótipos de raparigas independentes de uma cultura moderna, mas que estão igualmente submetidas a um sistema patriarcal (cf. Cabral, 1999: 234). Na adaptação cinematográfica da obra de 1987, realizada por José Fonseca e Costa, Mena, interpretada pela atriz catalã Assumpta Serna, é refigurada, perdendo a única característica consistente e não fetichizada que dela se conhece: os cabelos negros.

Referências

CABRAL, Eunice (1999). José Cardoso Pires – Representações do mundo social na ficção (1958-82). Lisboa: Edições Cosmos.

PIRES, José Cardoso (1982). Balada da Praia dos Cães. Lisboa: Dom Quixote.

RODRIGUES, Rogério (1983, 1 de julho).  "A verdade por detrás do  best-seller". O Jornal – 2.º caderno. Lisboa. 1–12.

[publicado a 19-10-2020]

 

Gabriella Campos Mendes