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Tomás Manuel da Palma Bravo

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Autor: Rogério Samora como Tomás Manuel

Tomás Manuel da Palma Bravo (José Cardoso Pires, O Delfim)

Tomás Manuel da Palma Bravo é o protagonista do romance O Delfim (1968), de José Cardoso Pires, designação que, no título da obra, se lhe refere. Mais comumente tratado pelo narrador como “o Engenheiro”, é ele (e a sua relação com aqueles a ele diretamente ligados) que despertará o interesse do narrador e das outras personagens da obra, em diferentes tempos narrativos. A inscrição Ad usum delphini, que surge como legenda ao mapa reproduzido nas primeiras edições do romance, confirma o título e remete para a condição de herdeiro de um poder e sucessor de uma linhagem destacada.

No primeiro parágrafo do livro o nome da personagem já é citado, quando o narrador denuncia que, “com divertimento e curiosidade, fui anotando as minhas conversas com Tomás Manuel da Palma Bravo, o Engenheiro” (Pires, 2015: 17), referindo-se aos momentos que teriam vivido juntos no ano de 1966, desde a primeira vez que o viu, no dia 31 de outubro. Sobre este primeiro contato, descreve: “Dois cães e um escudeiro, como numa tapeçaria medieval, e só depois se apresenta o amo em toda a sua figura: avançando na praça com a esposa pela mão; blêizer negro, lenço de seda ao pescoço” (25), fazendo referência à figura de Tomás Manuel acompanhado por seus dois cães mastins e seu criado, Domingos.

No entanto, é o desaparecimento de Tomás Manuel que cria toda a intriga que virá a se desenvolver na narrativa. De retorno à aldeia da Gafeira, após um ano ausente, o narrador vem a saber que Tomás Manuel está desaparecido e que Maria das Mercês, sua esposa, e Domingos, o criado, estão mortos. Este evento torna-se uma obsessão do narrador que ao longo de todo o livro rememora, reinventa e imagina situações vividas com Tomás Manuel, transitando entre o passado e o presente como se a personagem o acompanhasse constantemente. As falas das outras personagens resumem-se também à opinião que elas têm em relação ao Engenheiro (o que se estende à esposa e ao criado), criando uma multiplicidade de versões não confirmadas sobre o caso do desaparecimento e possível crime. Assim, além do Senhor Escritor que nos narra, apenas o Engenheiro tem, de facto, uma voz independente o que permite ao leitor ter acesso às ideias que lhe seriam próprias e depreender daí elementos da semântica transficcional da personagem.

A este respeito, importa notar a evidente adequação de Tomás Manuel a uma figura muito cara à literatura cardosiana, sabidamente, o marialva, descrito pelo autor da seguinte forma: “Marialva é o antilibertino português, privilegiado em nome da razão de Casa e Sangue (…). No convencionalismo popular (ou antes pequeno-burguês), marialva é o fidalgo (forma primitiva de ‘privilegiado’) boémio e estoura-vergas” (Pires, 1999: 14). O que se confirma na fala das personagens, como a Hospedeira que se refere aos ancestrais Palma Bravos como “oito fidalgos de bom coração” (32); ou através da opção de usarem, para o seu tratamento, denominações de conotação nobiliárquica como Infante ou Delfim; ou nos hábitos do Engenheiro em relação à bebida e aos lugares que frequentava – como o “Automóvel Clube” (Pires, 2015: 118); ou ainda nas falas do Engenheiro, declaradamente conservadoras e patriarcais, especialmente em relação às mulheres e aos seus subordinados: “Para a cabra e para a mulher, corda curta é que se quer.” (67), pensamento análogo ao que diz sobre o empregado: “Fui-me a ele, rédea curta e porrada na garupa, e pu-lo okay” (47).

Tomás Manuel personifica o declínio do marialvismo e um processo de mudança social vivida no país com a clara incoerência entre uma mentalidade retrógrada e provinciana e o inevitável desenvolvimento industrial: “É o preço do tempo. Para haver Jaguars e safaris foi preciso aceitar esta trampa toda” (92). A personagem faz parte deste processo, já que trabalhava em uma fábrica de celulose, em vez de no campo, como seus antepassados, “lavradores enaltecidos” (41); e não andava a cavalo como seu tio Gaspar, mas em um potente Jaguar. “Velho: nem mesmo consigo perceber para que lhe servia um cavalão tão rápido. Tu percebes?” (111).

É válido ressaltar que o carro é constantemente referido como uma extensão da personagem, como no exemplo satirizado por parte do Velho-de-um-só-dente – “Em vez de Engenheiro, Infante; em vez de automóvel, cavalo ou cavalão, e com mais um adorno, mais um sombreado, temos o Tomás Manuel transformado num diabo sem sorte, combatendo contra moinhos de gasolina e cavalgando um cego e descomunal pénis de aço” (111). Esta possível compensação fálica parece estar associada ao facto de Tomás Manuel e Maria das Mercês não terem filhos e os indícios do livro apontarem para uma esterilidade dele e não dela. Por exemplo: “Olhando-a naquela idade, e conhecendo-a depois, senhora da lagoa, deduz-se que o corpo que viria a ser inabitado se encaminhava desde muito cedo para as formas seguras e instaladas das madonas do lar” (87); e ainda: “No azedume com que Tomás Manuel falou dos bancos de esperma (…) não se esconderá o desespero de quem se julga incapaz de habitar um ventre de mulher?” (93).

Além do carro, outra alegoria utilizada para referir Tomás Manuel é a dos cães. O narrador assume que os cães são prolongamento de seus donos (61) e, no caso do Engenheiro, seus representantes eram dois mastins, cães de guarda de grande porte e instinto agressivo. Digno de nota é o facto de a personagem que melhor sabia lidar com os cães e com o carro ser o criado Domingos que, após sua morte, apareceria como fantasma de um cão maneta que rondava a lagoa (58).

O Delfim foi objeto de uma adaptação para o cinema, com realização por Fernando Lopes, em 2002. Nela, Tomás Manuel é interpretado por Rogério Samora, em uma atuação que lhe rendeu uma nomeação para melhor ator, nos Globos de Ouro em 2003. Um documentário sobre este livro foi exibido pela RTP em 2009, produção de João Osório, como parte da série Grandes Livros.

 

Referências

PIRES, José Cardoso (1999). Cartilha do Marialva. Lisboa: Dom Quixote.

____ (2015). O Delfim. Lisboa: Relógio D’Água.

Gabriella Campos Mendes