Luís Dantas Castro é a vítima no romance policial Balada da Praia dos Cães (1982) e protagonista do núcleo diegético do crime. A obra inicia-se pela autópsia do seu cadáver, encontrado por uma matilha de rafeiros em uma praia. O ex-major de artilharia do Exército – referido nos relatórios policiais como Dantas C – é baseado em uma figura da realidade, o capitão de Cavalaria José Joaquim de Almeida Santos, que foi encontrado morto na Praia do Guincho, em Março de 1960 (no romance, Praia do Mastro, em Abril de 1960). Toda a intriga do romance foi inspirada em um caso real conhecido como “crime da vivenda de Verde Pino” (Rodrigues, 1983: 2), de modo que “entre facto e ficção há distanciamentos e aproximações […] num paralelismo autónomo e numa confluência conflituosa, numa verdade e numa dúvida que não são pura coincidência” (Pires, 1982: 256).
O major Dantas Castro “se tinha evadido do Forte da Graça, em Elvas, onde aguardava julgamento por participação num abortado golpe militar” (16), juntamente com o alferes miliciano, também envolvido na tentativa de golpe, o arquitecto Fontenova Sarmento, e contando com o auxílio da sua amante, Filomena Athaíde (Mena) e do cabo Bernardino Barroca na fuga. Todos teriam procurado esconderijo numa vivenda isolada referida como “Casa da Vereda” e Dantas Castro, o líder daquele grupo, seria o responsável por conseguir ajuda para que todos saíssem clandestinamente do país. Os três cúmplices, no entanto, tornam-se suspeitos do homicídio, enquanto se admite a hipótese de assassínio político.
A caracterização do major é mediada pela figura de Elias Santana, o investigador da polícia responsável pelo caso, que constrói uma visão própria sobre Dantas Castro a partir das declarações dos suspeitos – especialmente de Mena – e de outras fontes como registos jornalísticos ou o caderno de apontamentos que pertencia ao major: “Dantas C, capitão nosso em figura de anjo guerreiro, capitão Castro, anjo castrense […] diabo na guerra e missionário no quartel. […] Era assim.” (67); “Nós, Oficiais das Forças Armadas, tomamos a decisão de, para honra da Instituição Militar, vir declarar ao País: 1. O nosso camarada, major Luís Dantas Castro […] era um oficial de espírito militar, corajoso e audaz” (89).
O tipo heróico que se desenha é, porém, progressivamente desconstruído conforme avançam a investigação e os interrogatórios, revelando um perfil agressivo – sobretudo com a amante, vítima de violência (170 e 217) – delirante e megalómano (133). Uma análise psicológica da personagem é repetidamente apresentada pelo Inspetor Otero: “o major sofria daquilo a que podemos chamar impulsos de destruição” (173); “um gajo com cinquenta anos, Covas, um gajo que bebia, que gostava de complicações, um gajo mais a mais inteligente e parece que simpático, um gajo destes andava a suicidar-se e tinha a consciência que andava” (174).
Transficcionalmente, Dantas Castro é apresentado de modo especular numa personagem de outro romance: o capitão Larsen, d’O Lobo do Mar, de Jack London. Este livro é citado na narrativa como pertencente ao cabo Barroca, contendo vários trechos sublinhados que relacionariam as duas personagens, i.e., “ele chefiava uma causa perdida e não temia os raios de Deus” (53). Além disso, Dantas Castro é também comparável a outra personagem de Cardoso Pires, o Tomás Manuel da Palma Bravo, de O Delfim, uma vez que ambos incorporam um estereótipo viril, violento, sedutor e machista. No entanto, diferentemente de Tomás Manuel, Dantas C. é um cidadão comum, citadino e com ideais revolucionários, não podendo, portanto, ser um exemplo de marialva (Pires, 1966). Configura, portanto, uma das diversas faces da representação do masculino em José Cardoso Pires: o homem politicamente progressista, mas que o é por motivações narcísicas, sendo ele mesmo autoritário e violento como o regime contra o qual se posiciona (Cabral, 1999: 243 – 244).
O sucesso do livro motivou a editora O Jornal a publicar, em 1983, um suplemento à 436ª edição do seu semanário inteiramente dedicado ao crime ocorrido em 1960. Nomes, fotografias e informações pessoais sobre cada um dos indivíduos foram divulgados, comparando-os com as personagens do romance, com duas páginas dedicadas exclusivamente ao major/capitão. Na adaptação da Balada da Praia dos Cães para o cinema, realizada por José Fonseca e Costa em 1987, Dantas Castro foi interpretado pelo ator belga Patrick Bauchau, que, por não falar português, teve suas falas dobradas pelo ator português Mário Viegas.
Referências
CABRAL, Eunice (1999). José Cardoso Pires – representações do mundo social na ficção (1958-82). Lisboa: Edições Cosmos.
PIRES, José Cardoso (1966). Cartilha do Marialva. Lisboa: Ulisseia.
____ (1982). Balada da Praia dos Cães. Lisboa: Dom Quixote.
RODRIGUES, Rogério. (1983, 1 de julho). A verdade por detrás do “best-seller”. O Jornal – 2º caderno. Lisboa. 1–12.
[publicado a 27-04-2020]