Protagonista e única personagem nomeada ao longo de Todos os nomes (1997), o Sr. José personifica, com o seu antropônimo bastante comum, muitas das temáticas e reflexões presentes neste romance de José Saramago, publicado na esteira de Ensaio sobre a cegueira (1995) e antes de A caverna (2000), com eles formando uma “trilogia involuntária” que não teria sido concebida como tal (Saramago in Vivas, 2001: 54), mas cuja designação a posteriori é expressiva tanto de uma série de similitudes entre as referidas obras como de uma mudança mais significativa no estilo do escritor português. Tal mudança tem que ver, sobretudo, com certas escolhas narrativas relativas ao tempo e ao espaço, propositadamente indeterminados, e à construção de personagens, mais alegóricas e elusivas nas suas feições (cf. Reis e Grünhagen, 2023: 131-140).
Figurado como um pacato funcionário subalterno, “nada mais que um simples auxiliar de escrita de cinquenta anos que não foi promovido a oficial” (Saramago, 2015: 38), o Sr. José e a sua vida cotidiana são muito definidos pela labiríntica Conservatória Geral ao lado da qual ele reside e a que dedicou “vinte e cinco anos de cumpridor e sempre pontual serviço” (51). Sem um retrato nem traços muito marcados, podendo ser um qualquer Sr. José, a personagem tem consciência da sua existência banal e desapercebida de burocrata, que contrasta com as notícias sobre pessoas famosas que coleciona no seu tempo livre.
Emblemático de um tempo contemporâneo não designado mas reconhecível, que continua a fazer da petite histoire de famosos capa e assunto de não poucos jornais, o interesse do Sr. José por essas vidas alheias é o que move de início a trama. Permitindo-se uma excepcional transgressão, a personagem decide completar as informações das celebridades do seu “pequeno país” (29), tampouco nomeado, com os dados que obtém às escondidas na Conservatória. Por engano, porém, o Sr. José acaba também levando para casa o verbete de uma mulher desconhecida, que desperta a sua curiosidade e cuja história decide investigar, nesse processo transformando-se e modificando mesmo a dinâmica interna da Conservatória.
A narrativa desenvolve-se, então, em torno dessa busca por um outro que acaba por escapar sempre, ainda que, em mais de uma ocasião, o caminho do Sr. José e da mulher desconhecida pareça se cruzar. Assim, a mesma escola que o Sr. José invade na calada da noite em busca de informações sobre a menina que ali estudara, numa cena digna de um filme policial, é onde a mulher adulta trabalha como professora de matemática (88-91, 256). As progressivas transgressões motivadas por aquela busca vão marcar a evolução da personagem, com frequência assinalada pelo característico narrador metaléptico de Saramago: “Acudam que é ladrão, dura palavra que o Sr. José não merece, quando muito falsificador, mas isto só nós é que sabemos” (87) e “Este não pareço eu, pensou, e provavelmente nunca o havia sido tanto” (112).
A subversão das convenções de outros gêneros, como o policial, associada às constantes reflexões metaficcionais do narrador estruturam a trajetória da personagem e podem ainda ser entendidas como uma elaborada estratégia narrativa de Saramago (cf. Monner Sans, 1999: 443-445). Nesse sentido, contrariando-se a expectativa de resolução do enigma proposto, vê-se que a busca do Sr. José acaba por se revelar frustrada: no meio do processo de investigação, a mulher desconhecida suicida-se, sem que o Sr. José, e nós com ele, percebamos as razões pelas quais o fez. Tratando da solidão, do esquecimento e do esforço em ultrapassar um e outro, o romance, como a ficção de Saramago de maneira geral, não apresenta respostas fáceis, mas aprofunda temas delicados e personagens consideradas menores, desinteressantes até o momento em que um Sr. José se põe a investigar e a contar as suas histórias.
No conjunto da obra de Saramago, a personagem do Sr. José, “um tipo de meia-idade, (...) com cara de ter estado doente há pouco tempo” (153), inscreve-se num rol de figuras masculinas solitárias, algo melancólicas e marcadas pelo seu ofício, fazendo par, entre outros, com Ricardo Reis, Raimundo Silva e Tertuliano Máximo Afonso, que trilham à sua maneira uma trajetória de busca por si e pelo outro, a identidade e a alteridade sendo importantes vetores temáticos da ficção saramaguiana.
Por fim, ressalvadas as especificidades de cada personagem e de cada narrativa, em diferentes aspectos a história do Sr. José também pode ser comparada com a de outras grandes figuras da literatura e do cinema, do Bartleby de Melville (1853) ao Josef K. de Kafka (O processo, 1925), passando pelo Kanji Watanabe de Kurosawa (Ikiru, 1952), todos eles confrontados com a repetição e a banalidade burocráticas, com os absurdos e abusos dos sistemas em que estão inseridos, nesse processo chamando a atenção para problemáticas existenciais e sociais sensíveis e atuais.
Em 2015, o romance Todos os nomes deu lugar a uma experiência teatral combinada com uma instalação multi-sensorial (dramaturgia: Megan Rivas); em 2022, as "crónicas dançadas" Nuestros Nombres reinterpretaram o romance na dança (dir. artística de Carlos Pinillos e Filipa de Castro, da Companhia Nacional de Bailado).
Referências
MONNER SANS, Ana (1999). “De aventuras, azares, amores y taumaturgias: la subversión genérica como estrategia narrativa en Todos los nombres”, Colóquio/Letras, 151/152: 441-452.
REIS, Carlos e Sara GRÜNHAGEN (2023). O essencial sobre José Saramago. Lisboa: INCM.
SARAMAGO, José ([1997] 2015). Todos os nomes. 12.ª ed. Porto: Porto Editora.
VIVAS, Ángel (2001). “José Saramago: ‘La globalización es el nuevo totalitarismo’”. Época, 21 jan.
[publicado a 19-02-2024]