Verbo latino usado para caracterizar uma rosa em um poema do heterônimo clássico de Fernando Pessoa, Marcenda transforma-se em personagem secundária de O ano da morte de Ricardo Reis (1984), fazendo par com o protagonista ao longo do fatídico período em que decorre a ação do livro. Junto com Lídia, seu oposto, ela constitui um dos principais laços que Ricardo Reis estabelece em seu retorno a Lisboa, carregando consigo a bagagem do heterônimo, mas vivendo a prosa de um tempo que vai confrontá-lo com sua visão poética de espectador do mundo. Nesse cenário, Marcenda tem uma função social específica, mas ela vai se recusar a assumir o papel que lhe seria designado.
Marcenda é apresentada logo no início da narrativa pelos olhos de Ricardo Reis, despertando sua curiosidade quando ele vê, em seu primeiro jantar no Hotel Bragança, “uma rapariga de uns vinte anos, se os tem, magra, ainda que mais exato seria dizer delgada” (Saramago, 2016: 25). Chama-lhe a atenção o modo como sua “mão direita vai afagar, como um animalzinho doméstico, a mão esquerda que descansa no colo”, e ele percebe “que desde o princípio aquela mão estivera imóvel, [...] os longos dedos estendidos, pálidos, ausentes” (25-6). Essa “mão paralisada e cega” (26), que a faz vir de Coimbra, com o pai, para se tratar em Lisboa, será uma marca distintiva de Marcenda, figurada como uma personagem delicada, de contornos borrados, incompleta: “de frente tem mais que os vinte anos que antes parecera, mas logo o perfil a restitui à adolescência, o pescoço alto e frágil, o queixo fino, toda a linha instável do corpo, insegura, inacabada” (26).
Quando Marcenda retorna a Lisboa para a sua consulta médica mensal, Ricardo Reis busca uma ocasião para se aproximar dela, indo ao teatro D. Maria II. Serve então de palco para esse encontro uma representação histórica da peça “Tá Mar”, de Alfredo Cortez, que contou com a presença dos pescadores de Nazaré, a 21 de janeiro de 1936. Com Ricardo Reis, passamos a conhecer melhor Marcenda num contexto narrativo que vai destacar o teatro social próprio daquele meio: todos ali surgem como “personagens da sua ação dramática, atores que representam nos intervalos” (122). Marcenda, também, tem de representar; moça de família, ela perdeu a mãe ainda jovem e sabe ser um pretexto para as aventuras amorosas do pai em Lisboa: “tenho vinte e três anos, sou solteira, fui educada para calar certas coisas, ainda que as pense, que tanto não se consegue evitar” (146). Ela entende que é como o “pai, com a posição que tem e a educação que recebeu, quanto mais segredo melhor” (147).
De início a relação que se desenvolve parece promissora; num jantar entre os três, e em meio a conversas políticas, o doutor Sampaio diz a Ricardo Reis que ele “está com a sua gente”, embora Marcenda, “por alguma razão [...], se resplendor havia, apagou-se” (154). Pouco dura, porém, a amizade do notário, que na vinda seguinte a Lisboa é informado da convocação de Reis à polícia política. A partir de então Marcenda toma a iniciativa, buscando manter contato com Reis, visitando-o em sua nova morada, no alto de Santa Catarina, onde é “pela primeira vez abraçada e beijada por um homem” (288). Cartas de amor como aquelas descritas por Álvaro de Campos são trocadas, percebendo Reis “que verdadeiramente ridículo é não ter recebido nunca uma carta de amor” (315), ansiando ele sempre pelo sobrescrito de Marcenda, num “levíssimo tom de violeta” (312). A moça tem, porém, consciência de que não sabe “distinguir entre o desespero e o amor” (289), e no reencontro com Reis vemos que ambos estão representando: “estamos a trocar vénias, ramalhetes de flores, é verdade que são bonitas, as flores, mas já vão cortadas, mortas, elas não o sabem e nós fingimos que não sabemos” (343).
Na perspectiva de Reis, Marcenda seria uma boa companheira, conforme “as educações e as famílias” (428), ocupando a posição que Lídia, criada e amante, em princípio não poderia exercer. Contudo, quando Reis a pede em casamento, Marcenda, “subitamente pálida, [...] disse, Não, muito devagar o disse, parecia impossível que uma palavra tão curta levasse tanto tempo a pronunciar, muito mais tempo do que as outras que disse depois, Não seríamos felizes” (344). Há algo de trágico nessa personagem, que ainda escreve uma última carta para dizer que "nunca mais nos tornaremos a ver, mas acredite em mim, ficará para sempre na minha lembrança por muitos anos que viva, se as coisas fossem diferentes" (347). Ao mesmo tempo, Marcenda é alguém que recusa, como pode, a complacência e a ingenuidade do papel que lhe caberia. Ela é construída em comparação com duas personagens de obras ficcionais inseridas na narrativa, em mise en abyme: a Marília de Conspiração, novela de 1936 escrita por um jornalista d’O Século chamado Tomé Vieira, e a Maria Clara de Revolução de maio, filme de Lopes Ribeiro rodado em 1936. Ambas são o paradigma da moça respeitável, “santas mulheres” (284), o “anjo bom”, “manifestações segundas do mariano culto” (285): a mulher com quem se deve casar, aquela com a educação e a orientação política desejadas, e que pode até ajudar a coibir a tentação de conspirar contra o regime.
Marcenda, no fim, recusa por extensão o convite do poema do heterônimo, cuja composição será encenada no romance, em um trecho que convida o leitor, via metalepse, a espiar o laboratório de escrita de Pessoa e Saramago: “é neste momento que o poema se completa, difícil, com um ponto e vírgula metido a desprazer, que bem vimos como Ricardo Reis lutou com ele, não o queria aqui, mas ficou, adivinhemos onde, para termos também parte na obra, E colho a rosa porque a sorte manda. Marcenda, guardo-a, murche-se comigo antes que com a curva diurna da ampla terra” (418-9).
No filme homônimo de 2020, dirigido por João Botelho, o papel de Marcenda ficou a cargo de Victória Guerra.
Referência
SARAMAGO, José ([1984] 2016). O ano da morte de Ricardo Reis. 25.ª ed., Porto: Porto Editora.
[publicado a 17-06-2020]