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João da Ega

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Autor: Gravura de Wladimir A. de Souza
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Autor: Pedro Inês como João da Ega.

João da Ega (Eça de Queirós, Os Maias)

Personagem com grande relevância na ação d’Os Maias, João da Ega participa nos mais destacados episódios da história relatada, em dois planos: no plano da ação social, João da Ega aparece no tempo em que Carlos da Maia vive em Lisboa, no período de 1875-1877, remontando a sua relação de amizade com o protagonista aos tempos estudantis de Coimbra; no plano da intriga, Ega pertence ao restrito número de personagens que conhecem de perto a ligação amorosa de Carlos com Maria Eduarda e o incesto que vem a ser revelado. De facto, é a João da Ega que o bizarro Guimarães entrega os papéis deixados por Maria Monforte e, com eles, o terrível segredo que destrói o que resta da família dos Maias. Nesse sentido, João da Ega é uma personagem decisiva: são dramáticas as horas por ele vividas, na sequência daquele reconhecimento trágico, um pathos que culmina no episódio do capítulo XVII, quando Ega confirma as informações prestadas a Carlos pelo procurador Vilaça.

Neste nível da história, João da Ega aparece como amigo, confidente e cúmplice de Carlos da Maia. Nessa função, participa na díade formada pelo herói e o seu amigo, quase um estereótipo várias vezes representado na ficção queirosiana (ex., Jorge e Sebastião, n’O Primo Basílio, Jacinto e Zé Fernandes, n’A Cidade e as Serras ou, de forma mais matizada, Teodorico e Topsius, n’A Relíquia). É o par assim formado que potencia uma relação dialógica que configura um discurso sem certezas ou, quando muito, baseado no confronto de posições diferentes, de onde emergem significados que responsabilizam, em primeira instância, as personagens. O episódio final em que Carlos e Ega discutem vários temas, para tentarem chegar a uma conclusão acerca do sentido das suas vidas e da sua geração, é bem sintomático da importância que o regime da puridiscursividade assume n’Os Maias (cf. Reis, 1999: 124-136).

A situação de João da Ega, no desenvolvimento da ação social do romance, é exuberante e provocatória, conforme pode observar-se nos episódios em que a personagem está presente: no jantar do hotel Central (capítulo VI), num outro jantar, em casa do conde de Gouvarinho (capítulo XII), ou no sarau do Teatro da Trindade (capítulo XVI). Repare-se nos termos em que Ega responde a uma pergunta do perplexo Sousa Neto: “Ega declarou muito decididamente ao sr. Sousa Neto que era pela escravatura. Os desconfortos da vida, segundo ele, tinham começado com a libertação dos negros. Só podia ser seriamente obedecido, quem era seriamente temido...” (Queirós, s.d.: 392) E mais adiante: “Só houvera duas civilizações em que o homem conseguira viver com razoável comodidade: a civilização romana e a civilização especial dos plantadores da Nova Orleães. Porquê? Porque numa e noutra existira a escravatura absoluta, a sério, com o direito de morte!...” (392). Deste modo, é em função do paradoxo e da irreverência iconoclasta que João da Ega vai deixando um rasto de afirmações e de poses em desconformidade com uma atmosfera mental conservadora. Daí resultam escândalos como aquele que ocorre quando, no início do baile dos Cohen, Ega é expulso pelo marido traído da bela Raquel (capítulo IX). O austero Afonso da Maia reage ao “desastre do Ega” com uma exclamação reprovativa: “– Má estreia, filho, péssima estreia!” (290).

Enquanto personagem que está presente nalguns dos mais importantes momentos do romance, João da Ega não é uma figura que registe mudanças significativas, a não ser as que decorrem do seu natural envelhecimento, paralelo, nesse aspeto, ao do amigo Carlos. Desde os tempos da boémia coimbrã, Ega era considerado “o maior ateu, o maior demagogo, que jamais aparecera nas sociedades humanas” (92). Contudo, logo então vão surgindo nele sinais de contradição: ao mesmo tempo que proclamava “o massacre das classes médias, o amor livre das ficções do matrimónio, a repartição das terras, o culto de Satanás” (92), Ega era “no fundo muito sentimental” e andava “enleado sempre em amores por meninas de quinze anos, filhas de empregados, com quem às vezes ia passar a soirée, levando-lhes cartuchinhos de doce.” (93). Mais de 15 anos depois, no reencontro com Carlos da Maia em Lisboa, João da Ega insiste no olhar corrosivo que lança sobre o país decadente, um olhar agora temperado pela discreta amargura que o obriga a reconhecer em Tomás de Alencar qualidades indissociáveis do estigma romântico a que nem ele resiste: “Não há nada, com efeito, que caracterize melhor a pavorosa decadência de Portugal, nos últimos trinta anos, do que este simples facto: tão profundamente tem baixado o caráter e o talento, que de repente o nosso velho Tomás, o homem da «Flor de Martírio», o Alencar de Alenquer, aparece com as proporções de um génio e de um justo.” (706).

Os atributos que em João da Ega se vão manifestando decorrem de dispositivos de figuração de diferentes naturezas. Falamos, assim, de dispositivos retórico-discursivos, envolvendo descrições pelo narrador omnisciente, em particular quando a personagem é caracterizada no tempo de estudante: “Com a sua figura esgrouviada e seca, os pelos do bigode arrebitados sob o nariz adunco, um quadrado de vidro entalado no olho direito – tinha realmente alguma coisa de rebelde e de satânico” (92). Essas descrições são depois confirmadas pelas ações da personagem, incluindo os seus discursos críticos e provocatórios, bem como a indumentária que destoa da mediania burguesa (recorde-se a “sumptuosa peliça de príncipe russo” (105) que Ega exibe perante Carlos); bem expressivo é também o disfarce de Mefistófeles com que Ega aparece no baile dos Cohen, um disfarce que, contudo, logo depois é desconstruído, em jeito de caricatura paródica: quando Carlos declarou a Ega que ele não podia mandar desafiar o Cohen para um duelo, “o outro estacou de repelão, atirando pelos olhos dois relâmpagos de ira – a que as medonhas sobrancelhas de crepe, as duas penas de galo ondeando na gorra, davam uma ferocidade teatral e cómica” (270).

Do ponto da vista da sua significação extensional, João da Ega é uma das figuras mais sugestivas d’Os Maias e de toda a ficção queirosiana, até pelos traços de semelhança com o escritor que por vezes lhe são apontados. Ega leva até à cena d’Os Maias uma componente satânica e antiburguesa que sempre fascinou Eça de Queirós; ao mesmo tempo, a personagem enuncia discursos doutrinários e protagoniza atitudes culturais em harmonia com debates e com movimentos literários relevantes na segunda metade do século XIX. O romantismo e a sua degenerescência (mas também a sua longa vida em Portugal), o naturalismo, a intolerância crítica que enfrentou e os excessos que cultivou são tematizados em episódios e em discursos em cujo centro se encontra João da Ega. O jantar do hotel Central e a discussão violenta com Tomás de Alencar por causa do naturalismo e da “Ideia Nova” valem como epítome ficcional das tensões que a cena literária portuguesa conheceu e das polémicas que a atravessaram. O próprio Eça conheceu e partilhou muito daquilo que a figura e os discursos do Ega polemista (e também escritor falhado) trazem ao romance: o naturalismo radical e acusado de “sujidade”, o estigma do plágio, a crítica ao sentimentalismo romântico, as personagens à clef, etc. Por fim, também João da Ega acaba por reconhecer, não sem melancolia, a persistência do ethos romântico: “Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame de latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento, e não pela razão...” (714).

Constituindo uma figura com uma certa dose de previsibilidade (o que não chega para que o entendamos como tipo), João da Ega tem sido uma das personagens queirosianas com mais extensa sobrevida, na posteridade da ficção em que surge; essa sobrevida está registada em diversas transposições intermediáticas. A singularidade fisionómica e temperamental da personagem favorece aquela sobrevida, bem atestada nas artes plásticas, por exemplo, nos desenhos e nas gravuras de Alberto de Sousa, de Wladimir Alves de Souza, de Bernardo Marques e de Rui Campos Matos, bem como no teatro, no cinema e na televisão. Nestas transposições intermediáticas, a personagem dá lugar a castings especialmente exigentes, que tiveram início em 1945, na adaptação teatral de José Bruno Carreiro (cf. Reis e Milheiro, 1989: 189 ss.), encenada no Teatro Nacional D. Maria II em 1945 (com Samuel Dinis como João da Ega) e reencenada no mesmo teatro em 1962 (Jacinto Ramos no papel de Ega). As composições, em geral aplaudidas, de Selton Mello (na versão televisiva da Globo, por Maria Adelaide Amaral e Luís Fernando Carvalho, em 2001) e de Artur Inês (na adaptação de João Botelho, de 2014), tornam evidentes também a dimensão caricatural de uma personagem que o público acolhe bem. Outras interpretações: Vicente Galfo, na teatralização televisiva (1979) por Ferrão Katzenstein, a partir da peça de José Bruno Carreiro; José Airosa, na adaptação teatral (de 2009) por António Torrado; e Gonçalo Waddington em Lusitana Paixão (2003-4; 150 episódios), telenovela em adaptação livre de Moita Flores inspirada n’Os Maias (Ega aparece como João Moniz).

 

Referências

QUEIRÓS, Eça de (s.d.). Os Maias: episódios da vida romântica. Lisboa: Livros do Brasil.

REIS, Carlos e Maria do Rosário MILHEIRO (1989). A construção da narrativa queirosiana. O espólio de Eça de Queirós. Lisboa: INCM.

REIS, Carlos (1999). Estudos Queirosianos: ensaios sobre Eça de Queirós e a sua obra. Lisboa: Presença.

Carlos Reis