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Tomás de Alencar

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Autor: Wladimir A. de Souza

Tomás de Alencar (Eça de Queirós, Os Maias)

Personagem secundária d'Os Maias (1888), de Eça de Queirós, Tomás de Alencar pode ser considerado um dos tipos sociais mais relevantes de toda a ficção queirosiana, representando nela a figura do poeta romântico, com as poses e com a retórica que o caracterizam. Para a figuração de Alencar contribuem decisivamente os procedimentos da sua inserção na história d’Os Maias, os tempos diegéticos em que isso acontece e as relações com outras personagens.

Do ponto de vista da dinâmica da sua figuração, importa notar que Alencar é a única personagem d’Os Maias que está presente nos três principais tempos da história: na juventude de Pedro da Maia (fim da década de 40 e início da de 50), nos cerca de dois anos (1875 a 1877) em que Carlos da Maia vive em Lisboa e no breve regresso do protagonista à capital portuguesa (em 1887). São redundantes, mas sofrem uma certa evolução, os traços de caracterização física exibidos pela personagem. Assim, naquele primeiro tempo, ele é “um rapaz alto, macilento, de bigodes negros, vestido de negro, que fumava encostado à outra ombreira, numa pose de tédio” (Queirós, s.d.: 22). No jantar do hotel Central, quando Carlos vê Alencar pela primeira vez, aparece “um indivíduo muito alto, todo abotoado numa sobrecasaca preta, com uma face escaveirada, olhos encovados, e sob o nariz aquilino, longos, espessos, românticos bigodes grisalhos (…): e em toda a sua pessoa havia alguma coisa de antiquado, de artificial e de lúgubre” (159). Por fim, no reencontro de 1887, Alencar surge “com a sua grenha inspirada e toda branca, e aquelas rugas fundas na face morena, cavadas como sulcos de carros pela tumultuosa passagem das emoções...”; e logo depois, passa “os dedos com complacência pelos longos bigodes românticos, que a idade embranquecera e o cigarro amarelara” (692). Os traços fisionómicos e a sua representação valem aqui como dispositivo retórico com forte incidência caricatural e, como tal, crítica.

Nos esboços de retrato permitidos pelas aparições de 1877 e de 1887, a imagem de Tomás de Alencar decorre de um efeito de focalização com interferência no processo de figuração: é Carlos da Maia quem observa em Alencar as marcas de uma feição sombriamente romântica, que o tempo vai degradando mas não faz desaparecer. Significativamente, nas derradeiras páginas do romance, João da Ega reconhece e até valoriza essa persistência e a autenticidade que a acompanha: “E por fim”, diz Ega, “no estado a que descambara a literatura, a versalhada do Alencar tomava relevo pela correção, pela simplicidade, por um resto de sincera emoção. Em resumo, um bardo infinitamente estimável” (706).

A participação direta de Tomás de Alencar na intriga do incesto é quase nula. Ainda assim, ele encontra-se associado a episódios e a decisões aparentemente irrelevantes, mas dignos de atenção. Depois do acidente de caça em que o príncipe napolitano é ferido a tiro, Pedro, como que desejando inconscientemente um outro rumo para a história, desabafa com Maria Monforte: “Podia antes ter ferido o Alencar, um rapaz íntimo, de confiança! Até a gente se ria.” (89); não é essa, contudo, a função destinada a Alencar nesse passado remoto, mas antes uma outra, tendo a ver com a formulação de presságios inscritos no nome do protagonista: foi o poeta quem propôs a Maria Monforte o nome Carlos Eduardo, sugerido por “um romance sobre o último Stuart, aquele belo tipo do príncipe Carlos Eduardo” (161); é ele mesmo quem o lembra, na noite em que conhece Carlos, ignorante de um destino induzido pela literatura.

Mais explícito é o papel desempenhado por Tomás de Alencar, enquanto figura com presença quase constante na vida social lisboeta. Nesse aspeto, ele ocupa um lugar simbólico que é o da literatura enquanto instituição legitimadora de discursos, de atos e de práticas sociais. O jantar do hotel Central não se faz sem uma acesa discussão sobre o naturalismo e a “Ideia Nova”, discussão cujo ponto de partida é a aparente perda de prestígio do romantismo; em Sintra, não é Maria Eduarda quem Carlos encontra, mas sim e inevitavelmente Alencar, que traz consigo os estereótipos românticos que aquele espaço implica; e no sarau do Teatro da Trindade é já um Alencar cativado pelas causas humanitárias quem declama um poema inflamado, mas ainda afetado pela retórica que sobrevive naquela poesia: “As rimas fundiam-se num murmúrio de ladainha, como evoladas para uma Imagem que pregas de cetim cobrissem, estrelas de ouro coroassem. E mal se sabia já se Essa que se invocava e se esperava, era a Deusa da Liberdade – ou Nossa Senhora das Dores” (611).

A condição de tipo que ficou assinalada em Tomás de Alencar determina o seu potencial semântico-extensional. Relacionado com isso está o facto de a marcação física, temperamental e discursiva da personagem ter dado lugar à identificação com o poeta Bulhão Pato, uma identificação que o próprio Eça tentou rebater (cf. Lourenço ed., 2000; Reis, 2015: 73-96). O que aqui está em causa é, em última instância, a direta relação de Alencar com um certo romantismo oitocentista, com a sua sentimentalidade e com os seus tiques comportamentais e estilísticos. Para todos os efeitos, Tomás de Alencar corporiza o poeta romântico, definindo-se assim como personagem com forte componente temática e representatividade cultural, num contexto crítico em que se procede à denúncia do romantismo como vivência cultural e social muito intensa na sociedade portuguesa. Por força das características que o distinguem, Tomás de Alencar é uma personagem muito atrativa para representações iconográficas (por Alberto de Sousa, Wladimir Alves de Souza ou Rui Campos Matos), televisivas e cinematográficas: vejam-se os expressivos castings de Osmar Prado, na versão d’Os Maias produzida pela Globo, texto de Maria Adelaide Amaral, em 2001, e de Pedro Lacerda, na adaptação de João Botelho, de 2014. Afora isso, destacam-se a peça de teatro de José Bruno Carreiro encenada em 1945 pelo Teatro D. Maria II e reencenada em 1962 e a a adaptação televisiva, em 1979, com realização em cinco episódios por Ferrão Katzenstein.

 

Referências

LOURENÇO, António Apolinário (ed.) (2000). O grande Maia. A receção imediata de Os Maias de Eça de Queirós. Braga: Angelus Novus.

QUEIRÓS, Eça de (s.d.). Os Maias. Lisboa: Livros do Brasil.

REIS, Carlos (2015). Pessoas de livro. Estudos sobre a personagem. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.

Carlos Reis