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Carlos da Maia

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Autor: Gravura de Wladimir A. de Souza
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Autor: Graciano Dias como Carlos da Maia

Carlos da Maia (Eça de Queirós, Os Maias)

Carlos Eduardo da Maia é uma das figuras centrais d’Os Maias (1888), sendo filho de Pedro da Maia e de Maria Monforte e neto de Afonso da Maia e de Maria Eduarda Runa. À exceção da educação de matriz britânica, dirigida pelo avô e representada no capítulo III do romance, Carlos protagoniza o percurso do jovem português rico e de origem aristocrática, na segunda metade do século XIX: estudos em Coimbra, viagem pelo estrangeiro, vida em Lisboa com vagos projetos de trabalho, dispersão de interesses, presença regular em episódios sociais e ociosidade generalizada. Em termos cronológicos, o trajeto da personagem, na ação do romance e na história da família Maia, situa-se sobretudo nos anos de 1875 a 1877, com um regresso em 1887, correspondendo ao epílogo do relato.

Na Lisboa romântica e culturalmente medíocre daqueles cerca de dois anos, Carlos da Maia destaca-se pela sofisticação do gosto. Descrito como uma figura elegante, de ar saudável, com barba castanha, cabelos negros e os olhos dos Maias, Carlos lembra um “belo cavaleiro da Renascença” (Queirós, 2017: 143); a isto junta-se um comportamento marcado pela inconstância e pelo diletantismo, em harmonia com a propensão esteticista que se projeta na decoração da casa do Ramalhete. Essa decoração inclui opções de gosto que explicam a reação do procurador da família: “Os recostos acolchoados, a seda que forrava as paredes, faziam dizer ao Vilaça que aquilo não eram aposentos de médico — mas de dançarina!” (65). No começo da vida adulta, os propósitos pessoais de Carlos pareciam indicar que ele viria a concretizar as expectativas do avô e aquilo para o que a sua formação o preparara; no entanto, vai-se gradualmente revelando a incapacidade para qualquer compromisso produtivo, desde a profissão de médico até aos projetos culturais. E assim, Carlos “ocupava‑se sempre dos seus cavalos, do seu luxo, do seu bric‑à‑brac”, invariavelmente cultivando aquela “fatal dispersão de curiosidade que, no meio do caso mais interessante de patologia, lhe fazia voltar a cabeça, se ouvia falar duma estátua ou dum poeta” (173).

No plano pessoal e, em particular, no campo sentimental, Carlos não consegue manter uma relação estável. A comparação com D. Juan, feita de forma casual por João da Ega, encerra, afinal, um sentido premonitório: “Tu és simplesmente, como ele, um devasso; e hás de vir a acabar desgraçadamente como ele, numa tragédia infernal!” (195). Assim, é significativo que a relação amorosa com Maria Eduarda (a única que parecia duradoura) se revele impossível e destrutiva, pondo em causa a continuidade da família. Vários elementos devem ser destacados nesta relação, dentre eles o olhar de Carlos e a forma como ele molda a figura e a personalidade de Maria Eduarda; o que esse olhar absorvente e possessivo retém são cores, formas e movimentos, conformando a imagem de uma mulher que surge a Carlos “com uma carnação ebúrnea, bela como uma deusa, num casaco de veludo branco de Génova” (224). A intensidade com que Carlos vive um amor que exige a fuga dos amantes (afinal não consumada) e o desgosto do avô revela um egoísmo com consequências extremas: depois de conhecer o laço familiar que o une a Maria Eduarda, Carlos mantém a relação incestuosa por um breve tempo, resultando dessa fraqueza moral  duas vítimas, a irmã e o avô. Em relação a ele próprio, confirma-se um destino de fracasso, já anunciado no plano profissional e acentuado pela falência moral que atinge a personagem e o que resta da família dos Maias.  Confirma-se, por fim, o estigma de perdição que fora sugerido por “aqueles irresistíveis olhos do pai” (143), na breve caracterização já mencionada.

No respeitante aos significados extensionais que sugere, Carlos da Maia pode ser lido como figura em quem enviesadamente se projetam limitações e frustrações que o contexto cultural e mental dos “episódios da vida romântica” ajuda a explicar. A falta de ânimo e de empenho anunciam nele uma atitude de vencidismo (cf. Lima, 1987: 227 ss.) perante a vida e perante uma sociedade dominada pelo estigma do romantismo, como se isso correspondesse a uma fatalidade irreversível; tenha-se em atenção que o próprio nome da personagem aponta no sentido daquela fatalidade: quando Carlos nasce, Maria Monforte “andava lendo uma novela de que era herói o último Stuart, o romanesco príncipe Carlos Eduardo; e, namorada dele, das suas aventuras e desgraças, queria dar esse nome a seu filho… Carlos Eduardo da Maia! Um tal nome parecia‑lhe conter todo um destino de amores e façanhas” (90-91). Cumprido o ciclo do falhanço existencial, é o amigo João da Ega, num regime dialógico não isento de contradições (cf. Reis, 1999: 131-136), que pergunta e logo responde: “Que temos nós sido desde o colégio, desde o exame de latim? Românticos: isto é, indivíduos inferiores que se governam na vida pelo sentimento e não pela razão…” (695)

Até certo ponto, Carlos e alguns dos que o rodeiam trazem consigo a evidência do fracasso de uma geração que prometia uma mudança das mentalidades e das instituições. O falhanço é assumido pela personagem (“falha-se sempre na realidade aquela vida que se planeou com a imaginação”; 694), num epílogo amargurado em que os sentidos da decadência nacional (um tema que liga “a produção literária queirosiana a preocupações históricas e ideológicas assumidas pela Geração de 70”; Reis, 2009: 204), do já mencionado vencidismo e de uma certa sobranceria perante os males da pátria aproximam Carlos de um seu homónimo: Carlos Fradique Mendes (cf. Saraiva, 2000: 131-148; Reis, 1999: 137-151).

A personagem Carlos da Maia tem dado origem a um número considerável de refigurações, em diferentes linguagens e contextos mediáticos, e também a várias derivações transficcionais. No que a estas diz respeito, destaque-se o conjunto de seis relatos, Os Novos Maias (edição Expresso, em 2013; série Eça agora), por José Luís Peixoto, José Eduardo Agualusa, Mário Zambujal, José Rentes de Carvalho, Gonçalo M. Tavares e Clara Ferreira Alves, incidindo, em exercício ficcional, sobre o destino da personagem, a seguir ao desenlace e epílogo d’Os Maias; num plano semelhante, A. Campos Matos publicou o Diário íntimo de Carlos da Maia (1890-1930) (Edições Colibri, 2014). No teatro, deve ser mencionada, entre outras, a versão de José Bruno Carreiro, encenada em 1945 (com Raul de Carvalho no papel de Carlos) e reencenada em 1962 e 1963 (com Paiva Raposo). No domínio das adaptações televisivas e cinematográficas, Carlos da Maia é protagonista em realizações de Ferrão Katzenstein, de Luiz Fernando Carvalho (com guião de Maria Adelaide Amaral) (cf. Flory e Moreira, 2006; Vicente, 2018) e de João Botelho, com interpretações de, respetivamente, Carlos Carvalho, Fábio Assunção e Graciano Dias. Edições ilustradas e séries de gravuras (por Alberto de Sousa, Bernardo Marques, Wladimir Alves de Souza e Rui Campos Matos, entre outros) deram igualmente corpo a Carlos da Maia, em diversos estilos e técnicas.

 

Referências

FLORY, Suely F. V.; MOREIRA, L. C. M. de M. (2006). Uma leitura do trágico na minissérie Os Maias. São Paulo: Arte & Ciência.

LIMA, Isabel Pires de (1987). As máscaras do desengano. Para uma abordagem sociológica de «Os Maias», de Eça de Queirós. Lisboa: Caminho.

QUEIRÓS, Eça de (2017). Os Maias. Episódios da vida romântica. Edição de Carlos Reis e Maria do Rosário Cunha. Lisboa: Imprensa Nacional.

REIS, Carlos (1999). Estudos queirosianos. Ensaios sobre Eça de Queirós e a sua obra. Lisboa: Presença.

REIS, Carlos (2009). Eça de Queirós. Lisboa: Edições 70.

SARAIVA, António José (2000). As ideias de Eça de Queirós. Lisboa: Gradiva.

VICENTE, Kylde B. (2018). Os Episódios da Vida Romântica. Maria Adelaide Amaral e Eça de Queirós na minissérie Os Maias. Curitiba: Appris Editora.

Carlos Reis