Bernardo Soares é uma figura de ficção criada por Fernando Pessoa (1888-1935), mas é também quem escreve o Livro do Desassossego (1913-…). Para descrever este “semi-heterónimo” (Arquivo Pessoa, Carta a Adolfo Casais Monteiro - 13 jan. 1935), é necessário ter em conta o processo de construção do livro onde ele acabaria por sobreviver. Num dos muitos momentos de introspeção que alicerçam o Livro do Desassossego, Bernardo Soares refere: “Sou uma figura de romance por escrever, passando aérea, e desfeita sem ter sido, entre os sonhos de quem me não soube completar” (Arquivo Pessoa, Cheguei hoje, de repente, a uma sensação absurda e justa: 4521). Veiculada em tom confessional, esta frase descreve o estado de espírito da personagem. Porém, ela parece igualmente espelhar a construção do próprio livro, que João Gaspar Simões apelidou de “puzzle literário” (Simões, 1983: 130-131). Segundo Richard Zenith, o Livro do Desassossego “é, e será sempre muitos livros possíveis, sem que possa existir uma edição definitiva” (Zenith, 2006: 21). Em algumas das suas missivas, Fernando Pessoa refere-se à preparação de um “Livro do Dessossego” ou à estrutura de um “livro”. O autor de mais de cinquenta heterónimos acabaria por falecer antes de poder finalizar esse projeto.
Este livro tem um caráter fragmentado e é fundamentalmente um conjunto de fragmentos reunidos a várias mãos (por Jacinto do Prado Coelho, Maria Aliete Galhoz, Teresa Sobral Cunha, Quadros, Richard Zenith, Jerónimo Pizarro, entre outros), de forma intermitente, a partir dos anos oitenta do século passado. Alguns desses fragmentos terão sido marcados com a sigla LdoD, outros ficaram por identificar. Por esse motivo, talvez esta obra não deva ser vista apenas como um livro inacabado, mas como um arquivo ou um texto em permanente geração. Em torno dos fragmentos deixados por Fernando Pessoa surgiram projetos como “Nenhum problema tem solução: um Arquivo Digital do Livro do Desassossego” (integrado no Centro de Literatura Portuguesa da Universidade de Coimbra), ou a base de dados Arquivo Pessoa, fruto da colaboração entre a Casa Fernando Pessoa e a Texto Editora.
Enquanto personagem, a evolução de Bernardo Soares está irremediavelmente ligada ao processo de construção do livro. À medida que ele cresce, esta personagem adquire uma personalidade e assume a sua (própria) autoria. De acordo com João Gaspar Simões, isto acontece “fragmentariamente”, entre 1927 e 1935 (Simões, 1983: 134). Pessoa terá assinado um primeiro texto pertencente ao Livro do Desassossego intitulado “Na Floresta do Alheamento” (1913). Posteriormente, Vicente Guedes (também este ajudante de guarda-livros) surgiria como o autor do Livro do Desassossego. Segundo Ángel Crespo, um fragmento assinado por Bernardo Soares aparece, em 1929, na revista Solução Editora (Crespo, 1990: 314). Ainda no mesmo ano, o Barão de Teive assume a autoria deste livro. Contudo, em 1932, o Livro do Desassossego viria a ser exclusivamente escrito por Bernardo Soares. Neste sentido, Soares poderá não evoluir ao longo de um enredo ou cadeia de ações, mas sofre diversas metamorfoses durante o seu processo de composição. A ligação entre a personagem e o seu livro surge também representada pelo carácter autorreflexivo da obra que é motivado por momentos de introspeção verbalizados por um narrador autodiegético. Por seu turno, o estado fragmentário do livro sintoniza com a entidade estilhaçada, permanentemente em construção, da personagem Bernardo Soares.
Para Pessoa, “Soares não é poeta.” E, de facto, Soares salienta que prefere “a prosa ao verso” porque “como a música, o verso é limitado por leis rítmicas (…). Na prosa falamos livres” (Arquivo LdoD, Prefiro a prosa ao verso: BNP/E3, 4-3r). Para Soares, a prosa é maleável e permite transformar o mundo ou gerar cenários alternativos. No entanto, o Livro do Desassossego não se centra nas ações das personagens, mas nas impressões “sem nexo” descritas pelo seu protagonista. São estas que catalisam o processo de escrita e a elas se deve a permanente geração do texto. A evolução da personagem ao longo de uma narrativa é substituída por uma intensa introspeção e por sucessivos saltos metalépticos. Pessoa afirmou: “Não evoluo, VIAJO” (Carta a Adofo Casais Monteiro, 20 jan. 1935). De forma similar, Soares não evolui ao longo de uma narrativa, mas viaja de impressão em impressão, absorvendo o mundo como um conjunto de cenários possíveis (cf. Maduro, 2015).
De acordo com Carlos Reis e Ana Cristina M. Lopes, a ‘personagem’ “revela-se (...) o eixo em torno do qual gira a ação e em função do qual se organiza a economia da narrativa” (Lopes e Reis, 1987: 387). A personagem-autor-narrador-escritor “Bernardo Soares” é o epicentro do Livro do Desassossego. Ele é um ajudante de guarda-livros que vive e trabalha em Lisboa. Porém, o resultado da sua interação com esta cidade e os seus habitantes não é relatado por um intermediário, mas na primeira pessoa. Muitas das frases do Livro do Desassossego foram escritas quando pensamentos ou sensações principiavam a emergir, sem sobreaviso, por Fernando Pessoa, em pedaços de papel disponíveis. Recorde-se que Fernando Pessoa foi um dos fundadores do sensacionismo, “de que é chefe o sr. Alberto Caeiro” (Arquivo Pessoa, Modernas correntes na literatura portuguesa: 1887), e ambos cultivavam os seguintes princípios: “sentir tudo de todas as maneiras. Abolir o dogma da personalidade: cada um de nós deve ser muitos.” (Arquivo Pessoa, 1. A sensação como realidade essencial: 1599). A obra de arte seria para Pessoa “um produto de imaginação” (idem). No Livro do Desassossego não existe uma trama ou uma história claramente circunscrita. Todavia, através de Bernardo Soares, podemos vislumbrar personagens, tais como o patrão Vasques e o Moreira, ou as pessoas anónimas que com ele se cruzam no quotidiano. Podemos também visitar lugares, entre os quais Cascais, o escritório da rua dos Douradores, ou o restaurante que Soares frequenta, onde há cerca de trinta anos trabalha o mesmo empregado.
A narrativa do Livro do Desassossego não apresenta um enredo coerente nem um desfecho derradeiro. Esta é uma narrativa episódica e ramificada, de teor hipertextual (o leitor poderá aceder ao texto através de vários pontos e, a todo o momento, poderão ser estabelecidos elos associativos entre os fragmentos) que apresenta o sujeito enunciador como matriz de todas as ações ou personagens: “Nunca tive amores tão reais, tão cheios de verve de sangue e de vida como os que tive com figuras que eu próprio criei” (Arquivo LdoD, A doçura de não ter família nem companhia: BNP/E3, 7-11). Contudo, Bernardo Soares apresenta-se por vezes como submisso a uma entidade superior: “Com que vigor da alma sozinha fiz página sobre página reclusa, vivendo sílaba a sílaba a magia falsa, não do que escrevia, mas do que supunha que escrevia! Com que encantamento de bruxedo irónico me julguei poeta da minha prosa” (Arquivo Pessoa, Releio lúcido, demoradamente, trecho a trecho, tudo quanto tenho escrito: 1689). Momentos como este, em que Soares se apercebe da sua condição ficcional, permitem entrever a existência de uma metalepse que percorre toda a obra. Deixam igualmente auscultar a voz de Fernando Pessoa ortónimo, que comunica através de uma máscara. De facto, tal como António Apolinário Lourenço afirmou, “nas páginas do Livro do Desassossego ecoam praticamente todas as vozes que habitaram Pessoa” (Lourenço, 2009: 63). Ao descrever esta personagem, será também importante ter em conta que o Livro do Desassossego não será apenas um texto em prosa poética, mas também um “drama em gente, em vez de em actos” (Arquivo Pessoa, Tábua Bibliográfica, 1928: 2700).
Apesar de não ser possível construir uma biografia densa acerca de Bernardo Soares – esta é uma “biografia sem factos”, tal como a própria personagem frisa – é possível identificar uma personagem dotada de vida. O “Sr. Soares” frequentava habitualmente uma “casa de pasto” e terá sido aí que conheceu Fernando Pessoa. Soares terá um “metro e setenta de altura, e sessenta e um quilos de peso” (Arquivo Pessoa, Prefácio: 2246). De acordo com o prefácio do Livro do Desassossego, escrito por Fernando Pessoa, Bernardo Soares era um homem que “aparentava trinta anos, magro, mais alto que baixo, curvado exageradamente quando sentado, mas menos quando de pé, vestido com um certo desleixo não inteiramente desleixado” (idem). A sua face era pálida e marcada por “aquele sofrimento que nasce da indiferença que provém de ter sofrido muito” (idem.). Soares conta-nos que a sua mãe faleceu quando tinha um ano de vida e seu pai suicidou-se quando tinha três (Arquivo Pessoa, Reconheço, não sei se com tristeza, a secura humana do meu coração: 2172). Foi acolhido por umas tias na província, até que foi levado por um tio “para um escritório de Lisboa” (Arquivo LdoD, Penso, muitas vezes, em como eu seria: BNP/E3, 3-44r).
O mundo ficcional do Livro do Desassossego não depende de uma sequência de peripécias ou do recrudescer de um conflito, mas da permanente metamorfose do real. Influenciado por simbolistas, associado ao movimento futurista, inserido no modernismo, Pessoa acabaria por produzir uma estética singular, de que é exemplo o Livro do Desassossego. Esta é uma narrativa tecida de sensações e que tenta alcançar um plano onde, perante o desaparecimento de Deus, poderá residir a essência humana. À semelhança de um flâneur benjaminiano, Soares assiste, em contratempo, ao espetáculo frenético e enigmático da cidade. Enquanto deambula por ela, partilha, abandonado ao desencanto, as suas reações dispersas a um exterior urbano. Pessoa assistiu ao fim da monarquia, à subsequente turbulência política e, junto a Bernardo Soares, presenciou o romper da Primeira Guerra Mundial e o início de uma ditadura.
Tal como Pessoa, Soares escreve sobre uma subjetividade múltipla. O processo de escrita é absorvido por Soares que, ao longo do Livro do Desassossego, desenha vários percursos que retornam sempre a ele. Bernardo Soares é igualmente uma personagem com potencial de sobrevida. Inúmeras teses e artigos continuam a ser publicadas em torno desta personagem. Os seus passos pelas ruas de Lisboa são hoje reconstituídos mediante a aquisição de pacotes turísticos (Pessoa escreveu um livro intitulado Lisboa - O que o Turista Deve Ver). E um filme realizado por João Botelho, o Filme do Desassossego (2010), fez dele o protagonista. Um documentário sobre o seu livro foi exibido pela RTP em 2009, produção de João Osório, como parte da série Grandes Livros. Por sua vez, o escritor Mário Cláudio deu a esta figura o lugar de personagem central da novela Boa Noite, Senhor Soares (2008).
Referências
CRESPO, Ángel (1990). A vida plural de Fernando Pessoa. Venda Nova: Bertrand Editora.
LOURENÇO, António Apolinário (2009). Fernando Pessoa. Coordenação de Carlos Reis. Lisboa: Edições 70.
MADURO, Daniela Côrtes (2015). “Ser a página de um livro - Bernardo Soares como personagem e livro”. Revista de Estudos Literários. 5: 491-527.
PESSOA, Fernando ([1997] 2008). Arquivo Pessoa. Lisboa: Obra Aberta CRL, disponível em http://arquivopessoa.net/ (Arquivo Digital do Livro do Desassossego).
PESSOA, Fernando (2015). Livro do Desassossego. Coimbra: Centro de Literatura Portuguesa, disponível em: Arquivo Digital do Livro do Desassossego.
REIS, Carlos e Ana Cristina M.LOPES. (1987). Dicionário de narratologia. Coimbra: Livraria Almedina.
SIMÕES, João Gaspar (1983). Fernando Pessoa: breve história da sua vida e da sua obra seguida de Fernando Pessoa perante Bernardo Soares. Lisboa: Difel.
ZENITH, Richard (2006). “Prefácio”, in Livro do Desassossego composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. Lisboa: Assírio e Alvim.
[publicado a 22-06-2018]