• Precisa de ajuda para encontrar algum conteúdo?

Senhor Soares

senhorsoares.jpg
Autor: Capa de edição Dom Quixote

Senhor Soares (Mário Cláudio, Boa noite, senhor Soares)

Personagem de uma novela cuja conceção surge da leitura do fragmento 279 (cf. Pessoa, 2003) do Livro do Desassossego (cf. Lucas 2008: 42; Almeida, 2008: 154), que relata a despedida de António, o moço do escritório da Rua dos Douradores, Bernardo Soares, a quase pessoa de Pessoa, é, nesta narrativa, protagonista de um jogo de ficções. Um jogo em que convive não apenas com outras personagens presentes no Livro, como o Patrão Vasques, o sócio capitalista ou outros seus colegas de trabalho, mas também com outras pessoas de Pessoa, como Ricardo Reis (Cláudio, 2008: 32, 57) ou Vicente Guedes (42). Um jogo, ainda, que, embora de modo tão pontual quanto fascinante, se alarga à inclusão como personagem de Tiago Veiga (38), o escritor “muito ninguém” (Lino, 2006: 22) com biografia publicada em 2011 e, eventualmente, máscara heteronímica do próprio Mário Cláudio.

Se é verdade que da leitura da novela ressalta o relato mais alargado da vida familiar de António (agora também Felício), não é menos verdade que, em simultâneo, sobressai a recriação do semi-heterónimo, nestas páginas ainda protagonista de um outro jogo: o das relações disfarçadamente afetivas com o jovem que pretende deixar Lisboa e regressar a Escalos de Cima. Bernardo Soares não é, aqui, pois, um “condenado à rotina de preencher com preços e quantias o Livro de Razão de um armazém de fazendas” (Zenith, 2003: 15), mas um ser densamente humano, e humanizado, um empregado elevado à categoria de tradutor e redator de cartas (14, 18), sem horário fixo (13), tal como o próprio Pessoa o foi, afinal (cf. Pessoa, 2003: 15).

Da teia de relações que gradualmente se vai consolidando, (re)constrói-se a figura de alguém que, embora seja visto como esquisito (18), neurasténico (22, 71), ensimesmado (29), estranho (43), resignado e frágil (passim), não deixa de suscitar a maior admiração e o maior apreço. Tal acontece, não apesar das características enumeradas, mas, justamente, por causa delas. No entanto, o fascínio exercido por Bernardo Soares (no leitor e nas personagens com quem convive) pode também ser explicado por fatores que decorrem da humanidade dos seus (des)afetos: quando notamos a antipatia por Sérgio, o caixeiro de praça (16); quando, em linha diametralmente oposta, deixa a António, por exemplo, “sobre a secretária um barquinho de almaço pautado” com o nome deste no casco (20); ou quando, no final, se despede do moço, num abraço com choro dentro (89).

A estas peculiaridades, acresce a sua humanidade de homem que, apesar de poeta e, por isso, supostamente distante e diferente do comum dos mortais, não deixa de ter no pequeno mundo da sua casa um calendário em cuja gravura sobressai uma rapariga “de cabeça atirada para trás, e de decote que lhe deixava a nu metade das mamas, sorrindo sem vergonha debaixo do cacho de uvas que suspendia sobre os lábios vermelhos” (78, 19). O deslumbramento que este homem provoca em António – e sobre quem paira a dúvida de frequentar uma casa de meninas, nas imediações da Calçada do Combro (42) – acontece, ainda, porque, na intimidade da casa, o vê, certo dia, surgir de “pés descalços, encafuados nuns chinelos” esburacados, de onde espreitava o dedo maior, de unha por aparar, "uma unha dura e encardida como não se admitia, nem mesmo a um limpa-chaminés” (77). Ainda que esta aparência quase grotesca seja tida, anos depois, como afetivamente maluca, não deixa de ponderar-se que ela “«É um sinal de Deus, é dali com toda a certeza que lhe nasce a sabedoria.»” (77).

O Senhor (Bernardo) Soares que Mário Cláudio (re)compõe parece, pois, finalmente, dar cumprimento ao sonho enunciado pelo seu duplo pessoano: o de “viver tudo em romance, repousando na vida, ler as [suas] emoções, viver o [seu] desprezo delas”, sabendo que, “para quem tenha as emoções à flor da pele, as aventuras de um protagonista de romance são emoção própria bastante, e mais, pois que são dele e nossas” (Pessoa, 2003: frag. 348)(Arnaut, 2011).

 

Referências

ALMEIDA, Pedro Dias de (2008). “A escrita é um susto”. Entrevista a Mário Cláudio. Visão, 5 junho: 154-156.

ARNAUT, Ana Paula (2011). “Três homens e um livro: Boa noite, senhor Soares de Mário Cláudio”, in Carmen Soares et alii (coords.), Norma & transgressão II. Coimbra: IUC. 201-213.

CLÁUDIO, Mário (2008). Boa noite, senhor Soares. Lisboa: Dom Quixote.

LINO, Pedro Sena (2005). “Versos de um muito ninguém”. Entrevista a Mário Cláudio. Público/Mil Folhas, 10 dezembro: 22-23.

LUCAS, Isabel (2008). “Quem escreve mal pensa mal”. Entrevista a Mário Cláudio. Diário de Notícias, 4 junho: 43-44.

PESSOA, Fernando (2003). Livro do Desassossego composto por Bernardo Soares, ajudante de guarda-livros na cidade de Lisboa. 4ª ed. Edição de Richard Zenith. Lisboa: Assírio & Alvim.

ZENITH, Richard (2003). “Introdução” a PESSOA, Fernando (2003). [Supracitado]

 

Ana Paula Arnaut