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Mulher

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Autor: Capa da edição Sá da Costa

Mulher (Carlos de Oliveira, Finisterra. Paisagem e povoamento)

A “mulher” é uma das personagens de Finisterra (1978), de Carlos de Oliveira. Sendo a sua figuração dotada de acentuado potencial simbólico e de diversas lacunas semânticas, a personagem é, quiçá, a que mais exige do leitor um esforço cooperativo para a composição de sua imagem. Ainda assim, pode-se rastrear um conjunto de traços e comportamentos que permitem distinguir tanto sua especificidade no interior desse universo ficcional quanto seu comprometimento com importantes vetores semânticos e axiológicos da obra.

Designada ora por “a mulher”, ora por “a intrusa”, a figura não recebe um nome próprio – aliás, como nenhuma outra personagem de Finisterra (p. ex.: Homem/criança). Com essa designação, põe-se em primeiro plano a sua relação com as demais figuras e uma certa perspectiva acerca de seu estatuto no interior da trama familiar. Explico-me: com o designativo “a mulher”, a figuração da personagem coloca-se desde logo numa relação de complementaridade com a de uma outra: a do “homem”, personagem central e principal fonte da informação narrativa; com o designativo “a intrusa”, alude-se ao mesmo tempo à sua posição de marginalidade no interior do núcleo familiar de que participa e a uma relação de hostilidade desse núcleo para consigo.

Isso porque, acusada de infertilidade, seria a mulher culpada por não deixar descendentes ao último representante da família, condenando-a ao fim. Não por acaso, há na casa um bocal de vidro contendo um feto pertencente à “primeira intrusa frustrada”, ou antes, à primeira a ter frustrado “os desígnios alheios” (Oliveira, 2003: 74), bocal cuja função é lembrar à personagem a suposta culpa por sua incapacidade de prover a continuação da descendência. A imagem, ou, antes, “o golpe na retina”, funciona como um aviso: “não espere complacência (nem perdão) a culpada (?)” (74). Como explicita o fragmento citado, não é a mulher a única intrusa a habitar a casa de Finisterra. Também a “mãe” (do homem) autodesigna-se, a certa altura, “intrusa, (...) tecedeira dum fio alheio, aparecida por acaso e necessidade” (79).

Tal afirmação sugere tanto a posição delicada das mulheres no interior desse núcleo doméstico quanto a dinâmica da narração: são intrusas, no nível da história, porque exercem o papel de estrangeiras cuja única função é tecer o elo hereditário; são intrusas, no nível do discurso, porque, ao falarem em seu próprio nome, põem em xeque a soberania da voz e da perspectiva do homem e dão a ver, de dentro, a problemática moralidade desse núcleo.

Em termos de descrição física, a mulher aparece à primeira vez na narrativa vestida com uma “camisola cor de mosto: ou será da luz (branco e roxo mesclados, tons que a vidraça filtra com os seus nódulos ao alvorecer)?” e com um “travessão prateado” a prender-lhe os cabelos, travessão este que “absorve a tonalidade roxa doutro modo: concentra-a em grânulos dispersos (violeta-pálido), pouco cintilantes”; quando se põe a andar, “mal se ouve o ranger do soalho” (51). Quer dizer, o aspecto físico da personagem fica desde logo restrito às impressões perceptivas do homem, que situa a imagem da mulher no interior dum jogo de luzes, cores e sensações responsável por empurrar sua figuração para o campo do misterioso e mesmo do sobrenatural.

Esses sentidos são corroborados quando o mesmo narrador se acerca das ações da personagem – melhor diria, dos “rituais” da personagem, pois aqui se trata menos de ação efetiva (no sentido de intervenções conducentes ao progresso duma sequência de eventos) do que de gestos carregados de simbolismo. De fato, desde que perdera uma cruz de vidro entre as dunas, a mulher repete às madrugadas, “sem variar” (53), o percurso entre o jardim familiar e o areal. Perdido tal crucifixo, restou-lhe entre os seios uma espécie de tatuagem, cicatriz que procura apagar. Em certa ocasião ainda, a mulher “colhe duas gisandras [espécies de plantas carnívoras] ainda cheias” e “espreme as plantas dentro da taça”, na esperança de que o líquido reduza “esta espécie de cicatriz ao tom geral da pele” (69), e, como por um ritual de fecundação, deixa que a substância da planta lhe procure “o interior do corpo” (132). Na sua derradeira aparição na narrativa, a mulher entra numa floresta “[n]ua, com a taça de madeira e cristal na mão (...) Chega em frente dos [camponeses] peregrinos (...); ergue a taça de gisandra, e bebe-a devagar”. Diante de sua visão ofuscante, os peregrinos recuam – a mulher se lhes afigura uma “sacerdotisa, cortesã” (129).

A cruz, a gisandra, o ritual de fertilização, entre outros elementos, formam uma rede de imagens que, dotadas de acentuado potencial simbólico, multiplicam as possibilidades de interpretação do comportamento e da identidade da personagem. Não cabendo aqui a elucidação de todas essas possibilidades, cabe, não obstante, a ênfase na representatividade temática e ideológica da figura. Ora, a mulher corporifica, antes de mais, a tentativa frustrada de sobrevivência de mais esta família de “pequenos burgueses”, condenados por seus próprios atos a um futuro estéril. Como elemento feminino, a “intrusa”, ao mesmo tempo que é envolta numa aura de intangibilidade, beleza e mistério, incarna um aspecto desviante característico das personagens femininas de Carlos de Oliveira, introduzindo uma perspectiva crítica no interior do universo social representado.

 

Referência

OLIVEIRA, Carlos de ([1978] 2003). Finisterra. Paisagem e Povoamento. Lisboa: Assírio e Alvim.

 

Gisele Seeger