Os peregrinos transportam grande parte do potencial semântico e ideológico de Finisterra (1978), concretizando, ao mesmo tempo, as novas direções adotadas pela obra final de Carlos de Oliveira. Tais personagens constituem um núcleo cuja figuração se estabelece em estreita conexão com a de um outro, aqui designado por “núcleo doméstico”, este que, concentrado no espaço da casa familiar, é composto pelas personagens do pai, da mãe, do homem/criança, da mulher, da criada, do tio e do amigo da família. O que chamo “núcleo peregrino”, de sua parte, é formado por camponeses, marceneiros e carpinteiros que atravessam a paisagem em fuga do calor excessivo e duma tempestade de relâmpagos de carbureto; seguem com eles bois, cavalos e carneiros que lhes garantem a subsistência.
Do mesmo modo que as figuras do núcleo doméstico, as do núcleo peregrino têm valorizadas muito mais suas vozes e seus gestos do que sua fisionomia ou psicologia – os camponeses em peregrinação são um “coro áspero que não se entende” (Oliveira, 2003: 22), e tanto eles como os animais em marcha são capazes de falar. Uma diferença fundamental, entretanto, insinua-se entre esses dois núcleos: enquanto as figuras do núcleo doméstico são entidades individualizadas, as do núcleo peregrino são coletivizadas. Tanto os camponeses, os marceneiros e os carpinteiros, como os bois, os cavalos e os carneiros falam sempre em nome dum nós, e as ações e preocupações destacadas quando se pronunciam não são nunca as do indivíduo, mas as do grupo. Tampouco o discurso denega a dinâmica do coletivo aí encenada, como evidencia este fragmento do discurso dos cavalos, que lamentam a metamorfose sofrida ao serem convertidos em personagens do desenho infantil: “Sofrer o ferro em brasa, as siglas tatuadas a lume. (...) Mas há coisas piores. Esta aparência de serpentes. (...) Quem nos garante que a metamorfose volta à encarnação precedente (com o vento a palpitar entre as crinas)? Duvidamos muito” (33-34).
Também a descrição física dos peregrinos corrobora a dinâmica do coletivo em que se inscreve essa figuração. Ao analisar os componentes do desenho, o adulto exime-se de particularizá-los, apresentando os homens como “corpos compactos, do mesmo tamanho”, “gestos dum ritual perto do fim: braços que pendem, para equilibrar a marcha, pernas flectidas, torneando os rochedos, dificilmente, a caminho da água” (19). Os bichos, por sua vez, “variam de corpulência. Carneiros maiores que bois; cavalos de rastos, como serpentes” (19).
É interessante o modo como se processa o contato entre os universos desses dois núcleos. Em certos momentos, a comunicação entre o homem e a criança com os peregrinos é facultada pela aproximação duma lupa sobre o desenho: “Passo-lha para a mão (...) e debruçamo-nos sobre o caderno. As figuras ardem (na cor indecifrável), crescem quatro ou cinco vezes)” (22). Noutros momentos, por um corte metaléptico, a luz do fogo liberta-se do desenho e desdobra-se pela sala em que estão o homem e o menino, projetando a peregrinação pelas paredes da casa e misturando os elementos desses dois universos: “A luz inesperada desdobra a peregrinação pelas quatro paredes, faz oscilar sombras cor de lume no estuque (na paisagem), nuvens de bolor e fumo pairam sobre a marcha” (30).
Outra diferença assinalável entre núcleo peregrino e núcleo doméstico reside no relacionamento com o tempo. Se, no caso do núcleo doméstico, sobressai a evocação do passado, uma vez que o próprio motor do relato é a retrospecção do homem que caminha pela casa, no caso do núcleo peregrino, destaca-se a perspectivação do futuro: “Qualquer dia a canga (a paciência) acaba”, dizem os bois ao aproximar-se a lupa do adulto, “esperança, vai havendo” (54). A diferença assenta ainda no fato de a relação do homem com a mulher ser marcada pela esterilidade, como observa a criança: “os filhos [dos peregrinos] também fugiram das aldeias queimadas. Mas hão de crescer, multiplicar-se. E os teus?” (56). Assim, o núcleo doméstico não só morre como também é incapaz de projetar o futuro, enquanto o núcleo peregrino, emancipado pelo desenho da criança, vislumbra um futuro fértil.
Em última análise, a oposição entre núcleo doméstico e núcleo peregrino reside, antes de mais, na divergência de perspectivas ideológicas, nos modos de conceber a (in)justa organização econômica e social do mundo que habitam. Enquanto as personagens do núcleo doméstico desejam preservar a manutenção da propriedade segundo as leis do morgadio e às custas do trabalho dos camponeses, as do núcleo peregrino almejam o fim desse regime de servidão. Essa divergência evidencia-se tão logo a narrativa faz falar os que não falam, deixando a cargo dos próprios peregrinos um discurso de emancipação, que, em última instância, indica a solidariedade da obra com os explorados e oprimidos. Assim, apesar de secundários na economia da narrativa, os peregrinos ganham, pois, importância axiológica ao manifestarem interesse coletivo, postura altiva e esperança, enquanto o núcleo doméstico, embora protagonista, perde em valorização moral por revelar-se enfraquecido, corrompido e ameaçado. Ao estabelecer essa diferença, a narrativa direciona a simpatia do leitor para o núcleo peregrino, sugerindo um ponto de vista solidário para com a classe social que tal núcleo representa.
Não é gratuita, ademais, a vinculação implícita entre os camponeses e os conhecidos peregrinos da estrada de Santiago. Com efeito, a narrativa propõe “na figura dos peregrinos e da peregrinação, a possibilidade, não tanto histórica como contrafactual, de um ‘comunismo primitivo’, exteriormente muito parecido com um ‘cristianismo primitivo’” (Silvestre, 2011: 76). No entanto, esses peregrinos “perderam já sua estrada de Santiago – as trevas abateram-se sobre eles”, e, ao falarem, “dão voz à sua história: a história tenebrosa e medieval de todo o sofrimento do mundo” (Silvestre, 1994: 76).
Ora, a figuração dos camponeses peregrinos evidencia que, diferentemente do que se poderia à primeira leitura supor, Carlos de Oliveira não abandona, mas ressignifica, em sua obra final, as “antigas obsessões” que permeiam o conjunto de sua produção. Nesse romance, o escritor olha os vetores ideológicos de que se nutre toda a sua ficção como por uma lupa ou como quem assiste a uma projeção cinematográfica, fazendo figurar a História não como uma “referência” nem um “conteúdo”, “mas, antes, e mais profundamente, [como] a instável forma de representar esse conteúdo ou referência, evidenciando como todo olhar pressupõe uma teoria, e uma política, do olhar” (Silvestre, 1996: 32).
Por essas e por outras especificidades, Finisterra. Paisagem e Povoamento é considerado o “episódio culminante e irreversível dessa deriva em direção a uma escrita narrativa problematizada no plano metaficcional” (Reis, 2004: 16) e uma das obras mais relevantes da literatura portuguesa do século XX.
Referências
OLIVEIRA, Carlos de ([1978] 2003). Finisterra. Paisagem e Povoamento. Lisboa: Assírio e Alvim.
REIS, Carlos (2004). “A literatura portuguesa da revolução ao fim do século”. SCRIPTA. Belo Horizonte. 8(15): 15-45. Disponível em: http://periodicos.pucminas.br/index.php/scripta/article/view/12566 (consultado em 7 de maio de 2021).
SILVESTRE, Osvaldo Manuel (1994). Slow motion: Carlos de Oliveira e a pós-modernidade. Braga: Angelus Novus.
_____ (1996). “Introdução”, in Carlos de Oliveira, Trabalho Poético (Antologia). Braga: Angelus Novus. 21-103.
_____ (2011). “História e direito natural em Finisterra. Paisagem e Povoamento”, in Osvaldo Silvestre (org.), Depois do fim. Nos 33 anos de Finisterra. Paisagem e Povoamento, de Carlos de Oliveira. Coimbra: Centro de Literatura Portuguesa. 75-85.
[publicado a 18-06-2021]