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Cilinha

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Autor: Pequenos burgueses primeira edição

Cilinha (Carlos de Oliveira, Pequenos burgueses)

Personagem de Pequenos burgueses (1948), de Carlos de Oliveira, Cilinha é a filha do Major, patriarca duma família de proprietários rurais do povoado da Fonterrada, na Gândara. Educada sob uma moral conservadora, que assenta na vida doméstica o destino da mulher, Cilinha é uma personalidade retraída e sonhadora. Por um arranjo familiar, está noiva do Delegado, que, perfazendo “um circuito quase fechado” (OLIVEIRA, 1981: 163), mantém um relacionamento paralelo com Rosário, também amante do Major. Tal como Maria dos Prazeres, d’Uma abelha na chuva (1953), Cilinha procura no devaneio amoroso o encantamento que a vida concreta, regida por convenções e aborrecimentos, lhe sonega. No quarto onde conserva seus velhos brinquedos, a rapariga entretém-se a escrever cartas de amor nunca remetidas a Pablo Florez, forasteiro espanhol com quem nunca trocara mais do que olhares.

A imagem de Cilinha constrói-se pela perspectiva de outras personagens, pelo discurso do narrador e pelos seus próprios comportamento e perspectiva. É do pensamento do Delegado que deriva uma primeira caracterização: “parece uma égua triste, alheia ao próprio corpo, que seria o duma fêmea em cheio se houvesse algum fogo lá dentro” (40-41). Dando seguimento à caracterização iniciada pelo Delegado, é o narrador quem, com o mesmo olhar machista, avança na descrição física da personagem: “o espelho reflecte o vestido de organdi azul, o corpo alto, já carnudo, que pode vir a ser, realmente, o duma fêmea em cheio” (43). Passa-se, então, ao aproveitamento da perspectiva individual, pela qual se concretiza a maior parte dessa figuração. Pouco é o que Cilinha efetivamente faz, em termos de intervenção direta na história: a maior parte de sua ação reside, antes, na contemplação e na fantasia.

Através de Cilinha, emergem no romance sentidos relativos a problemas da existência e reflexões de ordem metaficcional. Destacam-se aqueles sentidos projetados pelo “enigma de Cilinha” e pelo episódio do “pássaro azul”. Num momento de contemplação, a personagem observa “a luz suspensa desde os confins sobre as pobres almas do mundo, a paisagem do céu e da terra, onde respira qualquer coisa meio sufocada”, e “o enigma, que tanto a faz chorar sem saber porquê, oprime-a de novo” (45). A passagem fica inexplicada, sendo o narrador quem, páginas adiante, revela ser a solidão o tal enigma que faz chorar Cilinha. Nesse capítulo (XIII), centrado na descrição da paisagem da vila, o narrador envereda por uma reflexão em torno da “essência mineral do mundo”, na qual “pedra, fragmentos de pedra, acesa ou não, girando num vácuo obscuro” formam a imagem duma “matemática exterior a nós” (84-85), donde se desprende a solidão que nos envolve a todos. A solidão e a atenção à essência mineral do mundo, capazes de tocar profundamente uma personalidade sensível como a de Cilinha, são motivos recorrentes na ficção de Carlos de Oliveira e sinalizam, nas suas últimas publicações e nas reescritas da produção inicial (Pequenos burgueses foi editado sete vezes, sendo a edição final, aqui consultada, de 1981), a ultrapassagem das problemáticas sociais que constituem o interesse imediato do Neorrealismo.

O episódio do pássaro azul pode ser assim sintetizado: trazido pelo “vento e o luar das Três Dunas”, invade o quarto de Cilinha e dirige-se à papeleira um pássaro azul escuro, “um pouco maior do que um pardal” (56). Cilinha pergunta-se se o pássaro fará parte do enigma; o animal fita-a, “[t]enta dizer qualquer coisa, nunca saberei o quê” (57). Decide então apanhá-lo, mas se cansa numa de muitas tentativas falhadas. É então que logo encontra uma forma alternativa de o apanhar – borda-o num pano de estopa, “as asas abertas, como se voasse (...) vê-se bem quem não fugirá do aro de marfim” (111). Por um corte metaléptico, o pássaro se torna capaz de falar a Cilinha e, se não revela o que antes lhe queria dizer, queixa-se do céu de estopa grossa (“Devias ter arranjado um céu mais fácil, de seda, por exemplo”) e afirma não se sentir o mesmo ao se tornar ave bordada: “Falta-me qualquer coisa. A lua? O vento?” (112). O episódio não apenas dá vazão à instalação do insólito no interior do universo narrativo como também abre espaço a uma reflexão metaficcional ao sugerir as transformações ontológicas inerentes aos processos de figuração.

Em termos de representatividade temática, Cilinha é, pois, a via por onde emergem, ao mesmo tempo, preocupações ideológicas que sinalizam a afinidade do ficcionista com as problemáticas neorrealistas, como contradições da moralidade burguesa e do patriarcalismo, e preocupações existenciais e metaficcionais que transcendem o vínculo dessa ficção a uma programática estético-ideológica, garantindo-lhe a especificidade e a riqueza.

 

Referência

OLIVEIRA, Carlos de ([1948] 1981). Pequenos burgueses. 7.ª ed., Lisboa: Sá da Costa Editora.

Gisele Seeger