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Major

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Autor: Pequenos burgueses primeira edição

Major (Carlos de Oliveira, Pequenos burgueses)

O Major é uma personagem de Pequenos burgueses, terceiro romance de Carlos de Oliveira, publicado pela primeira vez em 1948 e editado sete vezes, até a edição final, bastante modificada, de 1981. Designada pela posição hierárquica ocupada no microcosmo social de que participa, a personagem é desde logo caracterizada pelo status de soberania que lhe confere a condição de proprietário duma quinta próspera, responsável por movimentar a economia do povoado gandarês da Fonterrada, em pleno desenrolar da Segunda Guerra.

Em âmbito mais restrito, o Major, com seus cinquenta anos, sua barba escanhoada e seu vício dos cigarros, é o patriarca duma família conservada apenas por razões de adequação social. Casado com D. Lúcia, não lhe tolera o avançar da idade, isto é, “as miudezas muito gastas, o fluxo menstrual a estiar (...), um odor enjoativo capaz de retrair o maior garanhão” (OLIVEIRA, 1981: 24), mantendo relação extraconjugal com a jovem costureira Rosário, com quem vislumbra um futuro, tão logo encaminhado o destino dos filhos Cilinha e Ricardo: “é preciso manter as aparências por eles. Algum tempo ainda, mas não muito (muito, de maneira nenhuma), porque aguentar já eu aguentei o que podia. Felizmente, Cilinha está quase a casar. (...) O Ricardo, paciência, meto-o num colégio em Coimbra” (35). Ironicamente, Rosário partilha o leito com o Delegado, futuro genro do Major, e o mesmo ambiente social que avaliza o adultério zomba da situação do amante enganado: “— E então, que mal há nisso? O Delegado casa com Cilinha e fica tudo em família” (33).

Quer dizer, trata-se de encenar, como em outros romances do escritor, uma estrutura social pequeno-burguesa corroída “de dentro para fora”, na qual o patriarca corporiza uma moralidade ambígua, assente, ao mesmo tempo, na manutenção duma ordem familiar rígida e na corrosão de valores individuais. Exemplar, a esse título, é o contraste entre a moralidade liberal que adota para si e o conservadorismo que dispensa à educação da filha. O Major considera “o pecado a única fonte da virtude, quer dizer, o exercício inteligente do pecado” (146), ao passo que proíbe a Cilinha a leitura de certos livros, pois que, em seu entender, “a moral é incompatível com a literatura” (146). Como observa o amigo D. Álvaro, o Major é dos que nasceram para alfaiate, concebendo o mundo como dividido em duas categorias filosóficas: calças e saias” (147): “ainda posso aceitar o desbragamento como norma dum homem; duma senhora, não” (147).

E se não podemos atribuir ao Major o papel de protagonista, é porque nesse romance o aproveitamento de diferentes focos narrativos faz variar a centralidade das personagens a cada capítulo. A figuração do Major depende diretamente dos momentos em que assume a voz e a perspectiva narrativas. O matrimônio desgastado com D. Lúcia e o relacionamento com Rosário, fundamentais para essa figuração, chegam-nos pela voz e pela perspectiva da personagem, que faz, ela própria, repousar o contraste entre as duas relações na semântica fertilidade/juventude versus infertilidade/velhice. Assim, por exemplo, é que, ao referir-se a D. Lúcia, alude a seu “cheiro desolado, um pouco pútrido” (26) e, ao referir-se ao quarto de seus encontros com Rosário, menciona o cheiro de “lavanda e fruta, com o toque de suor juvenil (ela e a terrina de laranjas em cima da cómoda)” (30).

O aprofundamento no mundo interior da personagem pelo recurso à focalização interna permite observar que os seus grandes conflitos derivam dum acentuado inconformismo diante da dinâmica temporal da vida, como se vê num de seus monólogos interiores: “Devíamos perder certas ilusões (...) arranjando um calendário só para nós, que não sugerisse nenhuma repetição. Do nascimento à morte, cada mês teria um nome diferente (...) Um calendário racional, sem invernos aos vintes anos nem primaveras aos oitenta” (34). Para além dos momentos de assunção da voz narrativa, são relevantes para essa figuração as intervenções diretas do narrador, que comenta o comportamento da personagem e dá a ver, com ironia, sua própria concepção acerca do universo narrado: “Este homem escandalizado dá as suas facadas no matrimónio com grande persistência. É verdade que as amantes são dignas dele e o esfaqueiam também desaforadamente. Assim se equilibra o mundo” (147).

É escusado observar que a figuração do Major projeta sentidos extensionalmente relacionados com o ambiente psicossocial da pequena burguesia portuguesa da primeira metade do século XX. Sua personalidade e comportamento ajustam-se ao retrato da hipocrisia, da dificuldade afetiva, do falso moralismo, do preconceito e das relações de aparência que a primeira ficção de Carlos de Oliveira, com um olhar nitidamente crítico, bem soube delinear.

 

Referência

OLIVEIRA, Carlos de ([1948] 1981). Pequenos burgueses. 7.ª ed., Lisboa: Sá da Costa Editora.

Gisele Seeger