Personagem de um romance de 2001 cujo título toma de empréstimo um verso de um conhecido soneto de Sá de Miranda, Carlos assume particular importância na ilustração de dinâmicas relacionais entre o universo masculino e o feminino que, de modo sistemático, pontuam a constelação ficcional antuniana, e de que são exemplares Julieta (A ordem natural das coisas) e Francisco (O manual dos inquisidores).
Confirmando o que diz em uma entrevista, sobre o facto de os seus romances assentarem sempre num “cenário sólido”, sendo “A casca” (pessoas, coisas, acontecimentos), depois, vestida “por dentro e por fora conforme [lhe] apetece” (Dias, 2008: 151), Lobo Antunes alicerça a realidade de Que farei quando tudo arde?, que pretende ser um “romance de amor desgarrador” (Coelho, 2008: 334), na história de vida do travesti Joaquim Centúrio de Almeida-Ruth Bryden, rainha da noite lisboeta (Castro, 2000). Tal como sucede no além texto, também a personagem vive um casamento frustrado, no caso com Judite (duplo ficcional de Maria da Conceição), de quem tem um filho, Paulo (Rui Miguel), em designação onomástica correspondente àquela que, no real, foi o nome do seu companheiro, a quem, no romance é dado o nome Rui. A intensidade da paixão, vivida até que a morte os separou, e os juntou em dois caixões lado a lado, faz com que Carlos abandone a mulher e a criança, levando-o a viver um percurso narrativo que permite a verificação de que as figurações do feminino resultam sempre em imagens irremediavelmente coloridas de tonalidades sombrias.
Assim, se no jogo (des)afetivo vivido com Judite, ainda no limbo de uma identidade não assumida em que ainda é homem, verificamos a construção de um masculino em violenta ascendência física e psicológica sobre o feminino, quando assume o corpo e a alma de Soraia, a personagem acaba por viver dramas idênticos aos da mulher, em geral, e aos de Judite, em particular. A identidade procurada, (re)encontrada e assumida transforma-o, portanto, numa espécie de duplo da mulher com quem casara, a ele, a ela, cabendo, agora, experimentar na pele os sacrifícios afetivos do avesso do género que recusa.
A paixão de Soraia por Rui, idêntica em intensidade à de Judite por Carlos, implica, ainda, suportar a troça dos outros, conviver com o mundo das drogas, ou aceitar o consequente acréscimo de um trabalho num outro estabelecimento para pagar o vício do companheiro (84) e por causa do qual acaba por ser espancado por cabo-verdianos (242). Num âmbito mais geral (e salvaguardando embora as devidas distâncias decorrentes dos contextos em que surgem), o seu feminino dá azo a comentários que não só evidenciam preconceitos de género, como, por extensão, facultam a verificação do olhar negativo, caricatural, do homem sobre a mulher.
Paulo, o próprio filho, vê-o como “um espantalho” (170) ou como “um palhaço com plumas e lantejoulas e cabeleira postiça [de] enchumaços nas nádegas, no peito, [de] boca pintada” (17, passim). Judite chama-lhe “o invertido” (85), enquanto os outros sempre se lhe referem como “o maricas” (passim) ou, no caso do cabo-verdiano que, em Chelas, vende droga a Rui, como o “maricas de merda” (41) (ver Arnaut, 2012).
Deixando de lado o facto de certo grau de realidade poder ou não ser confundido com existência (Pires, 2011: 271-272), a verdade é, pois, que a figuração de Carlos-Soraia permite a validação da ideia de que o eterno feminino está, ainda e sempre, em desvantagem com o masculino.
Referências
ANTUNES, António Lobo ([2001] 2008). Que farei quando tudo arde? 3.ª ed./1.ª ed ne varietur. Lisboa: Dom Quixote.
ARNAUT, Ana Paula (2012). As mulheres na ficção de António Lobo Antunes. (In)variantes do feminino. Alfragide: Texto.
CASTRO, Carlos (2000). Ruth Bryden. Rainha da noite. Lisboa: Dom Quixote.
COELHO, Alexandra Lucas ([2000] 2008). “António Lobo Antunes depois da publicação de ‘exortação aos crocodilos’ – agora só aprendo comigo’”, in Ana Paula Arnaut (ed.), Entrevistas com António Lobo Antunes. 1979-2007. Confissões do trapeiro. Coimbra: Almedina.
DIAS, Ana Sousa, ([1992] 2008). “Um escritor reconciliado com a vida”, in Ana Paula Arnaut (ed.), Entrevistas com António Lobo Antunes. 1979-2007. Confissões do Trapeiro. Coimbra: Almedina.
PIRES, Jorge Pereirinha ([2002] 2011). “António Lobo Antunes. Que farei quando tudo arde?”, in Ana Paula Arnaut (ed.), António Lobo Antunes: a crítica na imprensa. 1980-2010. Cada um voa como quer. Coimbra: Almedina.
[publicado a 09-02-2021]