Julieta é uma personagem de A ordem natural das coisas (1992), de António Lobo Antunes, irmã de Jorge, Fernando, Maria Teresa e Anita. Com a mãe, o pai destes, e outras figuras ligadas por laços de variado grau, dá corpo a um relato, dividido em cinco Livros, que sempre prolonga a temática do (des)amor, dos (des)afetos, da ruína da Casa ou da violência nas suas várias máscaras. O romance, que dela nos dá um retrato marcado pela exclusão e pela diferença (reconhecida e confessada por ela mesma, cf. Antunes, 2008: 258), mas que também a faz responsável por momentos de extrema sensibilidade e poeticidade, no modo como se comporta e na forma como efabula a realidade, parece todo ele (des)organizar-se à sua volta, apesar de apenas lhe ser concedida voz no Livro final. No entanto, é desde o início que suspeitamos da sua existência e que, à semelhança das probabilidades geradas pelos indícios que vão sendo apresentados num romance policial, criamos expectativas em relação a “um ruído de passos no andar de cima” (Antunes, 2008: 45), numa notação que se vai repetindo em eco. Viremos a conhecer o pleno sentido dessas referências quando Jorge, o irmão torturado por agentes da Pide, gritando o que pensava que eles queriam saber, afirma que o pai escondera Julieta no sótão “com raiva e vergonha de não ser dele” (169). Explicação à qual acrescenta uma outra, sobremaneira importante para a condição de macho que, em regra, caracteriza as personagens masculinas que povoam os romances antunianos, a saber, o pai “não queria que se soubesse que a mãe dos seus quatro filhos parira de outro macho”, porque “não queria que sonhassem que depois de o [seu] irmão Fernando nascer se tornara impotente, o [seu] pai queria que pensassem que era homem ainda, que foi homem (…) até ao fim da vida” (169).
A personagem reveste-se de grande importância na constelação ficcional de António Lobo Antunes não apenas pelo papel que desempenha na narrativa que integra, mas, principalmente, pelo facto de protagonizar uma impressionante e comovente alegoria, aplicável ao conjunto das personagens femininas (re)criadas pelo autor. Fruto, como se disse, de uma relação extraconjugal da mãe com um outro homem, Julieta não consubstancia apenas a dinâmica dos jogos relacionais masculino-feminino, pelo modo como se desenrola a sua (não) relação com o filho da costureira, por quem se deixa seduzir e de quem engravida depois de este lhe ter contado do mar que ela tanto queria ver e compreender e que só conhecia de fotografias (277). Além disso, ela também ilustra a mentalidade de uma época que, apesar da luta pela igualdade de géneros, ainda reduz a mulher à condição de não gente, de objeto ou de propriedade, aprisionando-a, metaforicamente, em gaiolas de grades inexistentes. Obrigada a viver no sótão da casa da família (de onde apenas sairá para parir em silêncio na Guarda, ou depois de todos abandonarem o lar) a existência de Julieta surge, desde o início do romance, em estreito paralelismo com a inquietação de uma raposa que, enclausurada numa gaiola de periquitos, duplica, ainda, alegoricamente, a globalidade da condição da mulher no universo antuniano.
Sujeitas a violências diversas cujo grau se intensifica com o escurecimento da cor da pele, as mulheres, as Julietas, da ficção antuniana permanecem irremediavelmente prisioneiras de contextos sociais, políticos, ideológicos e afetivos em que a mulher é educada para acatar as imposições da família ou do homem-marido-ou-amante. A tentativa de libertação, como no caso de Julieta, que, no final, depois da morte de todos os familiares, sai de uma casa abandonada apenas para, por entre uma chuva miudinha ascendendo no escuro, ir ao possível encontro da morte, redunda, sempre, portanto, em incapacidade de libertação conscientemente feliz e luminosa (Arnaut, 2012).
Referências
ANTUNES, António Lobo ([1992] 2008). A ordem natural das coisas. 3ª ed., Lisboa: Dom Quixote.
ARNAUT, Ana Paula (2012). As mulheres na ficção de António Lobo Antunes: (In)variantes do feminino. Alfragide: Texto.
[publicado a 23-07-2020]