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Francisco

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Autor: Capa de edição Círculo Leitores

Francisco (António Lobo Antunes, O Manual dos Inquisidores)

Francisco é uma personagem de O manual dos inquisidores (1996), de António Lobo Antunes, o primeiro romance da tetralogia “sobre o poder e sobre o exercício do poder em Portugal” (Arnaut, 2009: 20), tema que se articula com os da desagregação do núcleo familiar e, por conseguinte, e entre outros, da casa (a quinta de Palmela), efetivamente destruída para dar lugar a um condomínio de luxo. Ministro de Salazar e patriarca/ditador, (re)criado a partir de um velho que existiu na realidade (Zuber, 2008: 278; Viegas, 2008: 281; Cotrim, 2008: 474), a personagem, a quem cabe a responsabilidade dos relatos da última parte da obra, “(Pássaros quase mortais da alma)”, é a grande responsável pela ilustração do que foi o Portugal do Estado Novo, essencialmente no que respeita à dimensão política e, portanto, no que se refere às atrocidades cometidas durante esse período. Ela revela-se, ainda, de fundamental importância para a exemplificação grotesca e para a compreensão dos jogos relacionais entre o masculino e o feminino característicos da ficção de António Lobo Antunes.

A dimensão caricatural e ridícula de Francisco, agora no que toca ao domínio sentimental, é também passível de certificação a partir da relação obsessiva que mantém com Milá, que obriga a vestir-se como a ex-mulher, Isabel, e que desencanta “numa lojeca do Chile (…). Com menos de metade da idade dele (…), um bocado pata-choca”, um “espantalho que coxeava nos sapatos cambados a cheirar a bafio, todo solicitudes, atenções, delicadezas, mal se atrevendo a tocar-lhe no receio de quebrá-la” (Antunes 1996: 336-337). Indiciadoras objetivas da violência e da supremacia que o macho exerce sobre o feminino, na linha do que sucede na globalidade das narrativas do autor, a verdade é que, no caso, as exigências bizarras ecoam uma latente (in)capacidade afetiva (Arnaut, 2012: 112). Esta, igualmente adivinhada no (suspenso) pedido final que faz a quem o escreve: “peço-lhe que não se esqueça de dizer ao pateta do meu filho que apesar de tudo eu” (Antunes, 1996: 399), sempre se situa, todavia, na esfera do ridículo, assim reforçando o tom e as cores disfóricas com que se constrói a personagem. O mesmo efeito se obtém a partir do relato da relação que mantém com uma das suas outras amantes, a prima do farmacêutico, em cena de caça enriquecida pelo típico e sempre contundente recurso ao esvaziamento de elementos pertencentes à área do sagrado. Assim, enredado “em atenções de aranha” que lhe entala “as costas para o aprisionar” e que lhe enche “o prato de batatas e de molho em cuidados criminosos de engorda”, “o velhote”, Francisco, permanece numa “inocência de boi de açougue, a caminhar para a morte sob as pestanas do gato de gesso e a gula dos apóstolos da Última Ceia em relevo, alinhados de fome ao comprido de uma mesa vazia, preparando-se para disputar os restos num despudor de hienas” (358).

Depois de ter vivido momentos de pujança política (não por acaso também caricata e grotescamente narrados e descritos), Francisco é desde cedo abandonado pela mulher, e, não sendo nunca objeto de afetos (à exceção da governanta Titina), acaba por ser internado num lar de idosos, “num rés-do-chão de Alvalade (…), e lá está ele numa poltrona à janela, sem conseguir falar no meio de outros velhos que não falam também, também de roupão, também imóveis, também de dedos nos joelhos, mirando-me em silêncio num vazio zangado, o meu pai que duas empregadas arrastam à noite para a cama numa aflição de pantufas / – Fazer oó fazer oó quem é que tem muito juízo e faz um oó lindo quem é?” (47).

 

Referências

ANTUNES, António Lobo ([1996] 2005). O manual dos inquisidores. 10.ª ed. /1.ª ed. ne varietur. Lisboa: Dom Quixote.

ARNAUT, Ana Paula (2009). António Lobo Antunes. Lisboa: Texto.

____ (2012). As mulheres na ficção de António Lobo Antunes: (In)variantes do Feminino. Alfragide: Texto.

COTRIM, João Paulo (2008). “‘Ainda não é isto que eu quero’”, in Ana Paula Arnaut (ed.), Entrevistas com António Lobo Antunes (1979-2007): confissões do trapeiro. Coimbra: Almedina. 473-485.

VIEGAS, Francisco José (2008). “«Nunca li um livro meu»”. in Ana Paula Arnaut (ed.), Entrevistas com António Lobo Antunes (1979-2007): confissões do trapeiro. Coimbra: Almedina. 

ZUBER, Helene (2008). “ ‘Da Guerra não se faz ficção’ ”. in Ana Paula Arnaut (ed.), Entrevistas com António Lobo Antunes (1979-2007): confissões do trapeiro. Coimbra: Almedina. 

Ana Paula Arnaut