Protagonista de um destino tão incomum quanto cativante, permanentemente reinventado por Mário Cláudio a partir de um jogo que nos enreda numa complexa teia em que “tudo é mentira e tudo é real” (Lagartinho, 2011), Tiago Veiga surge inicialmente mencionado no jornal Tempo de 18 de agosto de 1988, em crónica publicada por Mário Cláudio sobre a sua morte, “aos oitenta e oito anos”, “numa aldeia dos arredores de Paredes do Coura”. Descendente “de um minhoto da área de Castro Laboreiro e de uma irlandesa de Dublin”, nascido, em 1900, “na mesma povoação onde viria a extinguir-se”, em lenda por ele alimentada, ou em Irajá, no Brasil, conforme a Biografia (cf. Cáudio, 2011: 37, 40), Tiago Veiga, “amparado por Pessoa, em suas primícias”, e por ele “aclamado, em plena juventude, como o Super-Camões” (Cláudio, 1988), nasce literariamente, de facto, em 2005, com a publicação de Os Sonetos Italianos de Tiago Veiga. Seguir-se-ão Gondelim de Tiago Veiga, em 2008, Do espelho de Vénus, em 2010, e Dezassete Sonetos Eróticos e Fesceninos, em 2016.
Tiago Manuel O’Heary dos Anjos, ou Veiga, em apelido “não constante do registo de nascimento” e “acrescido, “supõe-se que apenas a partir do início da sua idade adulta” (Cláudio, 2011: 720), é, pois, um homem que nasce e vive sob o signo de uma ambiguidade que também se espraia entre a sua existência e a sua inexistência; ou, por outras palavras, entre a assunção convicta de Mário Cláudio de que ele é uma pessoa de “carne e osso” (Lagartinho, 2011) e a possibilidade de ser, pelo contrário, um alter-ego (cf. Rodrigues, 2008) ou um heterónimo (cf. Arnaut, 2012: 77-73). São diversos os mecanismos usados para convencer o público leitor da veracidade da sua criação, destacando-se, em Tiago Veiga. Uma Biografia – retrato a corpo inteiro de uma vida escrita a pedido do biografado (650) –, estratégias de veridicção decorrentes, entre outras, do facto de ser dado como bisneto, pelo lado paterno, de Camilo Castelo Branco (39, badana), da moldura histórico-social, onde se conta a transcrição de notícias de jornais, ou as referências a dados guardados em cartórios, existência de epistolário com figuras reais, reproduções de pinturas e de fotografias (de Tiago Veiga, de familiares e de amigos ou conhecidos), ou, ainda, das próprias expectativas criadas pela identificação genológica. Porém, são igualmente inúmeros os indícios que permitem levantar o véu da suspeição. Sublinhe-se, por exemplo, que, com exceção do título do livro publicado em 2016, aos restantes se antepor ou pospor, sempre, o nome Mário Cláudio. Além do mais, os documentos que atestariam a sua existência estão no segredo de longínquos cartórios, porque alguns bilhetes se encontram extraviados (290, 741). Interessante, também, no jogo de ambiguidades de que se faz este homem, é o diálogo que, em Boa Noite, Senhor Soares (2008), mantém com o taberneiro do estabelecimento em que António Felício, companheiro de escritório do Senhor Soares (cf. Cláudio, 2008: 38), comemora os seus dezoito anos, e onde convoca, justamente, a viagem à Guiné, que relatará ao seu biógrafo e que este aproveitará para escrever a novela (266, 739).
Por um lado, esta ocorrência pode ser lida como mais uma ficção a aduzir ao jogo de ficções da pessoa de Pessoa presente na novela. Por outro lado, no entanto, se entrarmos no jogo biográfico proposto, aceitando a existência do “génio” de ímpeto destrutivo (484, passim), que deixa inéditos, “como todo o resto”, “dois vastíssimos estudos (...) sobre a ‘Golden Dawn’”, ou, entre outros escritos, “a insuperável odisseia ‘Triunfo e Glória do Arcanjo São Miguel de Portugal’” (Cláudio, 1988), o seu aparecimento no mesmo palco em que se movimenta o semi-heterónimo pessoano pode, também ele, consubstanciar uma notável estratégia de veridicção da própria ficção pessoana.
Referências
ARNAUT, Ana Paula (2012). “Tiago Veiga. Uma biografia (Mário Cláudio): a invenção da verdade”, in Carlos Reis, et alii (coord.), Uma coisa na ordem das coisas. Estudos para Ofélia Paiva Monteiro. Coimbra: IUC. 59-87.
CLÁUDIO, Mário (1988). “Tiago Veiga”. Tempo/Cultura, 18 agosto: 9.
____ (2008). Boa noite, senhor Soares. Lisboa: Dom Quixote.
____ (2011). Tiago Veiga. Uma Biografia. Lisboa: Dom Quixote.
LAGARTINHO, Rui (2011). “Sou incapaz de desinventar completamente uma vida”. Entrevista a Mário Cláudio. Público/Ípsilon.
RODRIGUES, Ernesto (2008). “Poesia portuguesa: uma década (1996-2006)”. Conexão Letras. 3(3). Disponível em: https://seer.ufrgs.br/conexaoletras/article/view/55602