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Dr. Neto

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Autor: Capa da edição Coimbra Editora

Dr. Neto (Carlos de Oliveira, Uma abelha na chuva)

Personagem secundária de Uma abelha na chuva (1953), um dos romances mais aclamados de Carlos de Oliveira e uma das obras mais relevantes do neorrealismo português, o Dr. Neto é o médico da pequena aldeia do Montouro, um dos convivas do casal Silvestre e o par “romântico” de D. Cláudia.

O relacionamento do Dr. Neto com D. Cláudia é dos mais significativos para sua figuração, desde logo porque acentua, por contraste, os traços mais marcantes de seu caráter. O namoro, arrastado por anos, é o mais improvável: sendo Dr. Neto dotado de “um corpanzil de gigante” (Oliveira, 2015: 43), D. Cláudia é uma “fragilíssima” senhora de “constituição linfática” (40). Enquanto o Dr. Neto, “atascado até ao pescoço na vida do Montouro” (40), entrega-se a realidades vivas, D. Cláudia prefere “refugiar-se” “na saleta dos folhetins e dos bordados” (122). Se não se casa, é porque “assustam-na a própria vida humana, as relações sociais, os pequenos equívocos da convivência, as conversas mais acaloradas” (39); o médico, por sua vez, aduz razões científicas para o adiamento do matrimônio: sou um heredo-sifilítico. [...] que filhos deitaremos ao mundo?” (40). O Dr. Neto é, pois, um prático, cujas preocupações se dirigem antes à terra do que ao céu.

Porém, se dispensa a religião, como tudo que não pode acessar pelos sentidos imediatos, o médico não deixa de extrair da realidade sensível uma sabedoria muito particular; além de acorrer aos quatro cantos da aldeia tratando de anginas e tiques nervosos, é apicultor. Seu lema é “assentar a evolução de uma ideia em coisas palpáveis como sementes, flores, abelhas, cortiços, mel” (40). Dessa filosofia emergem os vetores temáticos e ideológicos com os quais a narrativa se compromete. Como se sabe, sem abandonar vetores como a consciência da alienação em relação aos meios de produção e a solidariedade com as classes oprimidas, a obra prioriza as potencialidades artísticas da linguagem através de procedimentos supostamente incompatíveis com a programática neorrealista. Se na figuração de Álvaro Silvestre e de Maria dos Prazeres se revela maior parcela de elaboração técnico-narrativa, especialmente através da exploração da interioridade psicológica, na figuração do Dr. Neto esses vetores se revestem de carnadura simbólica. Do rol de símbolos associados a essa figuração, destacam-se, por sua centralidade, a abelha e o mel.

Conhecidas por sua exemplar capacidade de organização social, as abelhas simbolizam nesse romance um ideal inatingido de sociedade. Num dos serões em casa do casal Silvestre, o Dr. Neto assume a perspectiva narrativa e observa os presentes à contraluz, assim sintetizando sua percepção: “Vê-los desfigurados é vê-los inteiros: todos eles fabricam fel; abelhas cegas, obcecadas” (125); a única exceção é D. Cláudia, “não lhe toca o lume (nem a sombra) que os deforma” (125). A menção ao fel é igualmente significativa. É que, para o Dr. Neto, o mel “quase alcançava o teor da suma perfeição” (40); perfeição moral e afetiva que encontra em D. Cláudia, mas, sobretudo, perfeição resultante da dinâmica temporal. O trabalho das abelhas simboliza, para o Dr. Neto, “o que a Vida, a Natureza, Deus ou lá o que era, podia arrancar de belo e saboroso ao tempo” (40). Assim, os Silvestres e seus convidados não produzem senão fel porque metaforizam um modo de vida que, assente na alienação e na opressão, arruína-se. Já o mel, isto é, uma visão otimista do devir histórico insinua-se em Clara e Jacinto. Não é gratuita a observação do Dr. Neto acerca do apedrejamento das janelas dos Silvestres pelo povo: “Estou quase a admitir que a morte de Jacinto é tão importante como as janelas estilhaçadas” (125-126). Ora, o pessimismo da personagem quanto ao presente admite, entretanto, um lampejo de otimismo, justificado pelas transformações a serem desencadeadas pelo devir histórico.

Em plano mais amplo que o da diegese, localizamos na filosofia do Dr. Neto uma indicação acerca da estruturação semântica do conjunto da obra oliveiriana. Carlos de Oliveira, poeta e prosador, colhe do “saibro”, da “cal”, das “árvores”, do “musgo”, da “gente” “numa grande solidão da areia” (Oliveira, 1979: 207) a matéria sensível donde extrai ideias sobre as dinâmicas sociais, sobre as fissuras da interioridade psicológica, sobre as possibilidades de representação do mundo. É essa qualidade concreta, cada vez mais centrada na busca do “micro-rigor” do real, que confere especificidade à obra do escritor.

Uma abelha na chuva foi adaptado para o cinema em 1971, por Fernando Lopes. O Dr. Neto, no entanto, não figura entre as personagens recriadas pela obra fílmica.

 

Referências

OLIVEIRA, Carlos de ([1953] 2015). Uma abelha na chuva. 20.ª ed. Lisboa: Assírio e Alvim.

____ ([1971] 1979). O aprendiz de feiticeiro. 3.ª ed. Lisboa: Livraria Sá da Costa.

Gisele Seeger