Lillias Fraser, protagonista do romance homónimo (2001), é uma jovem escocesa que sobrevive ao massacre de Culloden, a última batalha da rebelião jacobita (1745-1746), onde perde toda a sua família. Com a História como pano de fundo e motivo da escrita, além de generais das guerras jacobitas, na Escócia, e dos 7 anos, em Portugal, na narrativa aparecem personagens históricas como o Ministro (o Marquês de Pombal) e o padre jesuíta italiano Gabriel Malagrida, bem como referências à Casa Real, ao reinado de D. João V de Portugal, a Voltaire e a filósofos franceses (cf. Bishop-Sanchez, 2004; Jamel, 2011).
Referida no começo da narrativa pelo seu nome verdadeiro, ao longo do romance Lillias Fraser passa a ser identificada por vários outros nomes, dependendo dos contextos e situações: Georgina, quando a querem fazer passar por inglesa, ao fugir do castelo de Moy Hall; Lillian MacLean, em Edimburgo, devolvendo-se-lhe a identidade de escocesa; Lília Peres, em Portugal e em companhia de uma companheira portuguesa de viagem, Cilícia; no fim do romance, apresenta-se de novo como Lillias MacLean, para logo revelar o seu nome original, Lillias Fraser, na presença de generais escoceses.
O papel de Lillias Fraser é fundamental no romance, sendo o seu acidentado percurso, da Escócia a Portugal, o fio condutor da narrativa. No contexto da guerra jacobita, pertencer ao clã dos Fraser é uma maldição e a órfã passa por uma diversidade de casas e companhias, da Escócia à Inglaterra, e depois a Portugal, onde a colocam no convento inglês. Pouco antes do terremoto de 1755, Lillias escapa-se do convento e encontra refúgio no convento de Mafra na companhia de uma senhora Cilícia com quem regressa mais tarde a Lisboa. Lillias engravida do filho de Cilícia, o soldado Jayme, que se alista na guerra contra a invasão espanhola na região da Beira Interior. Cilícia e Lillias partem à sua procura e alojam-se num bordel onde Lillias conhece um general escocês, Francis MacLean, que participa, do lado português, na guerra contra os espanhóis. Ao revelar o seu nome verdadeiro, que a identifica como pertencendo ao clã jacobita, Lillias deve partir; é então que encontra Blimunda no seu caminho. Ao longo da narrativa, a jovem órfã procura sempre um afeto materno, sucessivamente na companhia de Lady MacIntosh, de Georgina (doméstica de Moy Hall), de Soror Theresa no convento inglês, de Cilícia (com quem tem uma ambígua relação lésbica), para finalmente encontrar Blimunda.
A focalização de Lillias Fraser estabelece-se principalmente pelo narrador omnisciente que relata o seu percurso enquanto cresce, de uma menina “tão pequena e azulada” (Correia, 2001: 7) que consegue passar pelo meio das pernas do pai no começo da narrativa, a uma jovem com catorze anos, no momento do terremoto (110). É descrita de “cabelo dourado” e os seus olhos ocupam um lugar de destaque, referidos múltiplas vezes como “olhos amarelos”, “o seu olhar dourado” ou “olhos cor de mel” que incomodam, com frequência, as pessoas que a encontram (25; 69; 89, 98; 169; 234). Órfã desde muito cedo, com uma vasta experiência de vida, no momento do terramoto é já uma jovem adolescente, cuja independência de espírito desafia os costumes da época: passeia “sem véu nas praças e tabernas”; “via-se ali um escárnio dos costumes” (201).
O traço mais proeminente da caracterização de Lillias Fraser é o dom de ter visões: ela vê a morte das pessoas antes de isso acontecer (cf. Bishop-Sanchez, 2010). A jovem Lillias não sabe distinguir as visões da realidade, mas aos poucos percebe o potencial verdadeiro do seu dom: vê mulheres “que pareciam dissolver-se num líquido vermelho” (47), o aborto de Ann MacIntosh, o naufrágio na viagem de regresso a Inglaterra de Fanny Connelly, que a deixou em Portugal, a morte da freira que mais cuidou dela, Soror Theresa, assim como de muitas freiras no convento de Lisboa, quando do terramoto, um homem (que a tentou violar) na forca, o padre jesuíta Gabriel Malagrida, no garrote, devorado pelas chamas, e a morte de Jayme, que “entraria numa porta desfeito em sangue como Thomas Fraser” (196), o pai de Lillias. Esta última visão dá à narrativa uma forma circular.
Ao contrário do seu olhar extraordinário, Lillias não faz uso da fala. Por razões de segurança, para esconder a sua origem escocesa e depois por hábito, Lillias passa por muda. “É muda. Nunca soubemos nada a seu respeito” (27), diz Ann MacIntosh aos soldados ingleses. A sua incapacidade de falar é conveniente para esconder a sua identidade e o seu passado, como quando Aileen e Fanny Connelly, que a levam a Portugal, “acreditavam na mudez da rapariga, o que as poupava a muita informação” (71). A mudez é considerada um obstáculo ao seu desenvolvimento normal e agrava a impressão de, juntamente com os seus olhos de bruxa, “tratar-se de uma atrasadinha” (153). Em outros momentos, a sua figuração aproxima-a do reino animal. Ao recusar a companhia de pessoas humanas, o narrador enfatiza a sua animalidade; à noite “regressava a uma natureza de animal que precisava de enroscar-se, usando o solo” (156).
Em alguns momentos do romance, a figuração de Lillias é construída diretamente por comentários de outros personagens em relação a ela. A Lady Viúva define Lillias como bruxa na presença de um padre escocês; Mary Martin, em Lisboa, repete que a menina lhe causa repugnância; e no fim da narrativa, Lord Loudon exclama: “É pena que já não se queimem bruxas (...) ela dava um magnífico espetáculo” (271). Indiretamente, são também transcritas opiniões de personagens à sua volta: quando vagueia pelos arredores de Lisboa à procura de abrigo, depois do terramoto, é vista como uma cigana; Cilícia abusa dela e “aos olhos de Ana e de Tomás ela tomava a rapariga por boneca de brincar” (165); para Jayme, ela representa “uma forma perigosa de beleza” (198); quando encontra no norte de Portugal o general escocês, os ajudantes dizem que tinha “uma espécie de luz que a recobria.” (249); e até se transcreve a opinião que Lillias tem de si mesma (231).
Merece ser sublinhada a sobrevida transficcional da personagem Blimunda, do Memorial do Convento, de José Saramago, que aparece no fim do romance de Hélia Correia. Dotadas ambas de dons visionários peculiares, o destino das duas mulheres parece ligado, enquanto Blimunda leva Lillias Fraser ao seu cuidado, para que ela tenha o seu filho numa terra de ninguém, entre Espanha e Portugal.
Referências
BISHOP-SANCHEZ, Kathryn (2004). “Nos interstícios da ficção: Lillias Fraser e a reinvenção da História", in Maria de Fátima Marinho e Francisco Topa (eds.), Literatura e História. Actas do Conngresso Internacional História e Literatura (nov. 13-15, 2003). Porto: Faculdade de Letras do Porto. 61-64.
BISHOP-SANCHEZ, Kathryn (2010). “In/sight of Knowledge: Seeing Women in José Saramago’s Memorial do Convento and Hélia Correia’s Lillias Fraser". Bulletin of Hispanic Studies. 87: 843-861.
CORREIA, Hélia (2001). Lillias Fraser. Lisboa: Relógio d’Água.
JAMEL, Maíra Contrucci (2011). “Linguagem e Memória em Lillias Fraser, de Hélia Correia.” Diadorim. 9: 145-158.
[publicado a 04-11-2020]