A personagem "Mulher do Médico" surge nos romances Ensaio sobre a cegueira (1995) e Ensaio sobre a lucidez (2004), de José Saramago e é apresentada ao leitor no momento em que o seu marido, um oftalmologista, investiga a origem da "cegueira branca" que afetou alguns dos seus pacientes. Tal como as outras personagens deste romance, não conhecemos o seu nome próprio. Porém, ainda que identificada através de uma profissão que não é a sua e de um mero grau de parentesco, a Mulher do Médico desempenha uma função primordial nesta narrativa distópica. Ela é a única personagem que manterá a visão e, assim sendo, é a única que assiste a todas as atrocidades cometidas durante uma misteriosa epidemia de cegueira.
Para que não seja separada do seu marido quando este é levado para a quarentena, a Mulher do Médico finge também estar cega. Esta decisão condena-a a uma luta pela sobrevivência dentro de um espaço onde o ser humano desce "todos os degraus da indignidade" (Saramago, 1995: 262). Ainda que não o faça diretamente (contamos com a voz de um narrador e com a intervenção de outras personagens ao longo do percurso), é ela quem guia o leitor e o ajuda a explorar os espaços de um antigo manicómio e de uma cidade pós-apocalíptica. Dotada do poder de visão, a Mulher do Médico, impiedosamente, torna o leitor uma testemunha dos atos bárbaros e cruéis praticados em Ensaio sobre a cegueira.
O ditado popular "em terra de cegos, quem tem um olho é rei" é invocado neste romance, mas a Mulher do Médico não utiliza a sua visão como instrumento de controlo ou de domínio sobre o outro. Tal como a própria personagem adverte, ela não é uma "rainha" e é "simplesmente a que nasceu para ver o horror" (262). Corajosa, sensata e altruísta, exibe todas as qualidades necessárias para se tornar uma líder, mas declina repetidamente essa função. À revelia da sabedoria popular, opta por esconder o seu dom, evitando assim tornar-se uma "escrava" (93) de todos os cegos colocados em quarentena. Todavia, quando confrontada com uma tentativa de usurpação do poder, a personagem fará justiça pelas próprias mãos, libertando o grupo de mulheres de um reinado infame durante o qual os seus corpos haviam servido de moeda de troca para obter alimentos.
Assim que as personagens abandonam o manicómio consumido pelas chamas, a Mulher do Médico percorre a cidade para encontrar comida. De peitos descobertos e caminhando por entre destroços e cadáveres, a personagem é associada por Saramago ao célebre quadro La Liberté guidant le peuple (1830), de Eugène Delacroix. Contudo, o peso dos sacos cheios de comida roubada da cave de um supermercado impede que estes sejam levantados como uma bandeira (225). O facto de, no limiar das suas forças, ter sido obrigada a fugir de cegos para salvar o resultado do seu saque também inviabiliza uma correspondência absoluta com a imagem de uma heroína que indica o caminho para a libertação. Mais tarde, ela descobrirá que o ato pioneiro de descer à cave daquele supermercado, para encontrar mais mantimentos, teve consequências nefastas para muitos dos cegos que ousaram seguir o seu exemplo.
Saramago afirmou que, dado o gesto altruísta de acompanhar o marido até à quarentena, terá sido incapaz, enquanto romancista, de tirar a visão à Mulher do Médico (Saramago, 2013: 36). Munida da capacidade de ver, esta personagem acaba por aceitar encarnar o papel de heroína para conseguir salvar as personagens que a seguem ao longo da cidade armadilhada de doença, fome e desespero. Uma comparação com Joana d’Arc torna-se inevitável. Porém, à sua retaguarda apenas caminha um grupo restrito de cegos que dela dependem "como as crianças pequenas dependem da mãe" (Saramago, 1995: 218). A dado momento da narrativa, a mulher do médico, que aceita desempenhar a função de guia e "provedora" (224), não se inibe de confessar que, por vezes, deseja ser "igual aos outros, para não ter mais obrigações do que eles" (293). A Mulher do Médico é, afinal, humana.
Não conhecemos as feições, proveniência ou ocupação da Mulher do Médico. Este conjunto de omissões acaba por contribuir para torná-la uma personagem emblemática. Em Blindness, realizado por Fernando Meirelles (2008), Julianne Moore ofereceu o seu rosto a esta personagem. Para além deste filme, a Mulher do Médico persiste em sobrevida transficcional no livro Ensaio sobre a lucidez (2004). Depois de ter encontrado o "inferno do inferno" (Saramago, 1995: 191) dentro de um manicómio, ela terá de resistir ao estado de sítio que, desta vez, a encarcerou dentro dos limites da cidade. Neste romance, quatro anos passados da cegueira branca, reencontramos as seis personagens que a Mulher do Médico guiou em Ensaio sobre a cegueira. A capital onde residem é ameaçada pela epidemia do voto em branco que põe em causa o sistema político vigente. Após serem informadas, através de denúncia anónima, que a Mulher do Médico manteve a visão durante a epidemia de cegueira, as autoridades decidem investigar a personagem. Um grupo de polícias é incumbido de interrogá-las e de forjar provas que permitam culpar a Mulher do Médico pela epidemia do voto em branco. Durante os interrogatórios, as personagens que a Mulher do Médico salvou, protegeu, alimentou e cuidou (cf. Saramago, 2017: 264) em Ensaio sobre a cegueira referem-se a esta personagem como "valente" (236), "excecional" e "fora do comum" (264). Estes testemunhos farão com que um dos interrogadores a defina como uma "espécie de heroína, uma alma grande" (265) e com que um outro interrogador, ainda que ponha a sua vida em risco, rejeite desempenhar o papel que lhe foi atribuído. Apesar deste reconhecimento, a Mulher do Médico pagará, juntamente com o Cão das Lágrimas, pelo erro de nunca ter perdido a visão.
Em 2022, por ocasião do Centenário de José Saramago, a Mulher do Médico foi uma das personagens contempladas no projeto intermediático Mulheres Saramaguianas.
Referências
MEIRELLES, Fernando (dir.) (2008). Blindness. Japão, Brasil e Canadá: Rhombus Media.
SARAMAGO, José (1995). Ensaio sobre a cegueira. Lisboa: Caminho.
____ (2013). A estátua e a pedra. Lisboa: Fundação José Saramago.
____ (2017). Ensaio sobre a lucidez. Lisboa: Caminho.
[publicado a 09-01-2020]