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João Carlos

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Autor: Mario Botas - Capa da 8ª edição (1991)

João Carlos (Almeida Faria, Tetralogia Lusitana)

João Carlos (J.C.) é umas das personagens da Tetralogia Lusitana de Almeida Faria. Constituído por A paixão (1965), Cortes (1978), Lusitânia (1980) e Cavaleiro andante (1983), o conjunto de narrativas apresenta a saga de uma família portuguesa num período que vai de antes da Revolução dos Cravos, em 1974, passando pelos conflitos pela independência de Angola, ao 25 de Novembro de 1975. As ações iniciam-se na propriedade rural da família em Montemínimo e continuam por Lisboa, Veneza, Brasil e Angola. As personagens que compõem o núcleo familiar são Francisco (o pai), Marina (a mãe), André (o irmão mais velho), João Carlos, Arminda (a única filha), Jó e Tiago. Também coabitam o espaço diegético: Samuel (namorado de Arminda), Sónia (namorada de André) e Marta (namorada de João Carlos). São personagens que possuem dramas individuais e coletivos (que podemos chamar também de históricos), configuram-se como representações da constituição identitária, histórica, econômica e social de portugueses de diversas faixas etárias.

João Carlos ou J. C. como passa a ser chamado em Cortes, segundo livro da Tetralogia, é uma personagem que percorre as quatro narrativas. Para Manuel Gusmão, em prefácio à obra, a abreviação do nome da personagem aproxima-a de Cristo, aludindo à ideia de sacrifício pessoal e renovação, uma vez que a primeira narrativa, A paixão, está diretamente ligada ao período pascal – “parece uma irónica assimilação da personagem ao crucificado que ressuscita.” (Gusmão, 1991: 7).

De temperamento introspectivo, avesso ao contato social, voltado aos estudos e à solidão, trazendo desde a infância o desgosto de saber-se filho quando o desejo dos pais era uma filha, J.C. já demonstrava o não pertencimento ao local de nascimento, à ordem patriarcal e à organização familiar.

As discordâncias com o pai, que o levaram a sair de casa em noturna fuga, contrariando ordens e comportamentos esperados, decorriam da posição política de J.C. e da aversão aos negócios da família voltados para a agricultura: “Não posso mentir nem ocultar metade da verdade: dava-me mal com o Pai, sempre achei que me olhava com desconfiança por não aceitar os seus padrões, por ter imaginação, por não querer aí ficar, por não ser dogmático, ou melhor, fanático, em relação àquilo em que acredito.” (Faria, 1986: 40).

A fuga havia começado antes, em Évora, quando J. C. tomara consciência de sua falta de leitura e conhecimento. Devorava romances para suplantar a ignorância e daí para a saída da casa paterna foi pouco tempo, um corte “do cordão umbilical, corte epistemológico” (Faria, 1991: 89). A idealização de um futuro promissor com a revolução e a libertação do período ditatorial deram-lhe o impulso para a saída de casa. Seriam esquecidos: a família “mãe de monstros e abortos” (89), a censura política e paterna, a mediocridade e a mentira. Agora era Lisboa e Marta – a namorada.

Sequestrado misteriosamente junto com Marta – “rocambolesco rapto e sedutor sequestro”– frase de André, em Lusitânia (FARIA, 1986: 26), e levado para Veneza, Itália, J.C. já distante de Portugal toma conhecimento da morte do pai e se nega a voltar. Retorna depois de meses e pedidos dos irmãos e da mãe. Ao regressar, emprega-se como comissário de bordo e retoma os estudos na Faculdade de Direito, além dos escritos poéticos em que concentra a raiva pela distância de Marta que ficara em Veneza. – “Os intervalos entre o curso de Direito posto quase de parte, feito em regime voluntário, sem ir às aulas, e o curso de três meses na aviação comercial, além do ofício de tradutor a tanto a página [...]” (Faria, 1987: 18). Mantém uma correspondência assídua com Marta em que discutem arte, literatura e questões de ordem política de Portugal. Nas cartas de J.C. fica evidente o descontentamento com os rumos do país e o que era pretendido como revolução e o resultado pós-25 de abril.

A independência de J.C. é sobretudo em relação ao atavismo ligado à religião e à terra. Decepcionado com o país (denomina o retorno como “tombo”), vive as experiências da diáspora familiar: a fuga, o rapto, o emprego de comissário de bordo, a viagem de André ao Brasil e depois para Luanda. Da poética vida veneziana, J.C. retorna à “mesquinhez monumental” (Faria, 1986: 144), à “maldita mansão” (144) e à “mansidão doméstica” (144), em meio à confusão nacional. O período em Portugal é para J.C. um rito de passagem ao qual ele espera sobreviver e encontrar Marta no final. Uma jornada do herói, com obstáculos a vencer e a procura ou busca por si mesmo, para o segredo de sua própria identidade. Um herói infeliz com o destino cumprido à sua revelia. Segundo Eduardo Lourenço em prefácio a Cavaleiro Andante, J.C. é um duplo menos idealista de André, voltado para a “errância desenvolta, cultural e erótica, pela velha Europa, onde Marta, sua amada estetizante, o convoca ” (Lourenço, 1987: 10). Nas palavras de Marta, J.C. é um Don Juan que não sabe seduzir – “não é do teu feitio no fundo tímido, introvertido, eticamente rígido” (Faria, 1987:86).

Álvaro Cardoso Gomes, em A voz itinerante, comenta que, na Tetralogia Lusitana configuram-se três modelos comportamentais da tradição lusíada: o "imobilismo" (Gomes, 1993: 49), representado pela mãe, Marina; o “navegar é preciso” (49), mote para J.C. e a “vocação terceiro-mundista de André” (49) – que viaja ao Brasil e à África.

Recluso em seu universo de tristeza política e distanciamento familiar, J.C. idealiza a poesia, sonha com o amor e com o retorno de Marta e, renascido qual Cristo – ao fugir de casa e seguir seu destino longe do fantasma hamletiano (designação de Eduardo Lourenço) do pai – torna-se, ao longo das narrativas, signo do desejo de mudança e da impotência tantas vezes evidenciada frente aos acontecimentos que fogem ao seu controlo.

Em 1998 foi publicada uma adaptação teatral d'A Paixão, pelo próprio autor, com o título Vozes da Paixão 

 

Referências

FARIA, Almeida ([1980] 1986). Lusitânia. São Paulo: DIFEL.

____ ([1983] 1987). Cavaleiro Andante. Lisboa: Editorial Caminho.

____ ([1978] 1991). Cortes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

GOMES, Álvaro Cardoso (1993). A voz itinerante. Ensaio sobre o romance português contemporâneo. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo.

GUSMÃO, Manuel (1991). “Cortes: a paixão de um tempo de desgosto” in Almeida  Faria. Cortes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

LOURENÇO, Eduardo (1987). “Travessia de textos e busca de sinais no labirinto da morte” in: Almeida Faria. Cavaleiro Andante. Lisboa: Editorial Caminho.

Gabriela Silva