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Marta

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Autor: Capa de edição da Nova Fronteira

Marta (Almeida Faria, Tetralogia Lusitana)

Marta é a figura central do conjunto de romances que formam, em sequência cronológica, a Tetralogia Lusitana, de Almeida Faria; nela, apresenta-se a saga de uma família, começando no Alentejo, desde antes da Revolução dos Cravos, até ao momento em que sucede o início da liberdade política em Portugal, o fim das guerras coloniais e a independência das colônias africanas. Formada pelas obras A paixão (1965), Cortes (1978), Lusitânia (1980) e Cavaleiro Andante (1983), a Tetralogia Lusitana pretende construir uma metaficção historiográfica de Portugal da segunda metade do século XX.

As narrativas que integram o conjunto incluem diversas personagens de um núcleo familiar, abordando as suas relações com a sociedade e com a história. São estabelecidas, entretanto, ligações com outras figuras externas, as quais acabam por se converter em uma rede de relações amorosas significativas. Namorada de J.C. (João Carlos), Marta é uma dessas figuras, deslocando-se pela diegese da Tetralogia Lusitana até ao seu final.

Além de ser judia sefardita, Marta é estudante de Belas Artes, e a sua maneira de entender o mundo, a sociedade, a história e a política contrapõe-se ao pensamento português vigente no período. Em Cortes, romance formado por fragmentos que lembram verbetes sobre personagens, Marta é apresentada ao leitor através de memórias da infância, dos momentos de encontros com J.C., e assume a sua forma material, não mais como a “namorada de Lisboa”, mas na condição de alguém que participa de um cotidiano a ser compartilhado. Em A paixão, Marta espera J.C. em Lisboa, depois que ele decide deixar a família, contrapondo-se ao pensamento do pai.

É, portanto, em Cortes que tomamos conhecimento da juventude de Marta, passada na casa sombria ─ muito diferente do apartamento pequeno no Bairro Alto ─, e da vontade de fugir da casa paterna para começar uma vida de liberdade e luz. Lisboa é a cidade da faculdade de Belas Artes, dos cafés e bairros interessantes, cenários estes que passam a ser corriqueiros e comuns aos seus passos, assim como as experiências do uso e entorpecimento com drogas.

A maior parte do relacionamento entre J.C. e Marta é apresentada ao leitor através da epistolografia dos namorados. A correspondência ocorre no período em que Marta está em Veneza. Sequestrados em um domingo de Páscoa, à beira do Tejo, por três árabes que estavam em missão revolucionária em Lisboa, os dois são levados para Veneza por um homem chamado Carlo Ítalo Mocenigo. Comunista e descendente de antigos doges, o anfitrião oferece-lhes abrigo e trabalho – Marta torna-se governanta e J.C. trabalha como bibliotecário em uma livraria. Com o passar dos dias, J.C. decide retornar a Portugal e a namorada permanece.

Na correspondência entre Marta e J.C., evidenciam-se determinados traços das personalidades de ambos. Marta revela-se uma potente voz crítica do comportamento português, dos momentos históricos pré e pós-revolução e do pensamento conservador da sua própria geração. Recusa-se a retornar a Lisboa em 1975 e, ao decidir continuar em Veneza, abre-se uma gama de experiências que ela talvez nunca pudesse atingir na sua terra natal. Veneza torna-se o centro do conhecimento artístico, onde a personagem encontra obras e artistas que estudava nos livros de arte. Além disso, Veneza seria uma das partes constituintes daquela que seria a cidade perfeita, “Venhattan”, sítio, cidade de sonho, um espaço imaginado através da aglutinação de Veneza e Manhattan.

A “judia errante” aponta, em sua escrita, diversos elementos do imaginário da arte e também da literatura, ao mencionar Goethe, Shelley, Rilke, Henry James, Melville, Sartre, Pasolini, Pound, Pessoa e os deuses e histórias da mitologia grega. Também é feita referência às músicas de Vivaldi, Mozart, Wagner e outros. As artes plásticas, tão caras à personagem, são o cenário das cartas e também do imaginário de Marta, abordando Tintoretto, El Greco, Da Vinci, Luini, os irmãos Bellini e muitas outras das inúmeras personalidades da arte que habitam os museus da Itália.

Nas cartas à mãe, são traçadas linhas de saudade, cartas também repletas de arte, em uma compilação de detalhes que compõem o imaginário de Marta. A personagem conta as suas ideias sobre política, Marx e o sebastianismo, criticando a colonização da África e o contributo de Portugal aos países explorados. Marta deixa claro em algumas cartas, tanto para a mãe quanto para J.C., o seu amor pelo namorado. No entanto, o sentimento não a impede de criticá-lo como amante, pois deixa a companheira sozinha com outro homem no estrangeiro; como homem, ao ser tão indeciso e por vezes covarde, tomando a decisão de ser comissário de bordo ao invés de permanecer na Itália; como poeta, pela sua mediocridade em muitos aspectos, um “furioso místico-sem-mística” (Faria, 1987: 228).

Por vezes, sentindo-se imensamente solitária em uma Veneza que é um híbrido de beleza e ausência, Marta percebe-se Penélope, Nausicaa e Eurídice, personagens da mitologia que representam a espera do amante, em uma paciência que transcende o tempo e a dor. Suplicante, com medo da sedutora presença de Carlo, pede a J.C. que regresse rápido para Veneza.

É a voz de Marta que encerra a Tetralogia Lusitana. Sua última carta, de 30 de novembro de 1975, traz ao leitor a recorrência do passado histórico, dos mitos literários, de um Portugal que, nas suas fontes de uma busca hermenêutica, não se esgota em si mesmo. A carta para J.C. é datada do mesmo dia da morte de Fernando Pessoa, uma data triste por trazer consigo a notícia da morte de André. As palavras, repletas de um desgosto indisfarçável, falam da ideia de um retorno breve para rever a mãe e J.C.

A personagem de Almeida Faria, “errática judia sem pais nem comunidade” (277), desde a distante morte do pai, das lembranças de uma infância boa, iluminada pela arte e pela literatura, a viver em uma cidade inventada e construída a partir da arquitetura do seu imaginário, era, por fim, uma portuguesa infeliz com a história do próprio país. Marta é a alegoria do desejo de rebeldia e da luta contra o conformismo, da letargia frente a um Portugal lento e pesado com seus fardos históricos: a ditadura, a liberdade tardia, o pensamento e as guerras coloniais, as revoluções e a própria cultura portuguesa.

Em 2020, uma dramatização por Jorge Silva Melo, com o título A Reviravolta, deu voz a algumas personagens de Tetralogia Lusitana.  

 

Referências

FARIA, Almeida ([1980] 1986). Lusitânia. São Paulo: DIFEL.

____ ([1983] 1987). Cavaleiro Andante. Lisboa: Editorial Caminho.

____ ([1978] 1991). Cortes. Rio de Janeiro: Nova Fronteira.

____ (2014). A paixão. São Paulo: Cosac e Naify.

 

[publicado a 07-07-2023]

Gabriela Silva