Personagem central do romance O Monge de Cister, do escritor romântico Alexandre Herculano, esboçado em 1840, mas publicado somente em 1848; trata-se de um romance histórico onde se faz um retrato de Portugal do século XIV, focalizando o reinado de D. João I (1385-1433), com ênfase no ano de 1389. Ademais, em analepse são retomados os anos de 1383 a 1385, período da tomada do poder pelo Mestre de Avis, derrotando a rainha Leonor Teles, viúva do rei D. Fernando.
O Monge de Cister está inserido num projeto maior de Herculano intitulado O Monasticon e juntamente com o romance Eurico o Presbítero (1844) apresenta a tese em torno dos votos sacerdotais e dos conflitos da vida monacal, mediante os desejos da natureza humana. Logo, na confluência entre história e ficção, entre sagrado e mundano, destaca-se o protagonista Frei Vasco, da ordem dos frades cistercienses ou dos frades bernardos. “O mais moço, de cuja boca saíam as expressões de desesperação (...) era mancebo de vinte e dous a vinte e cinco anos, bem proporcionado e robusto, tez morena e cabelo negro, basto e crespo, feições talvez não formosas, mas, sem dúvida, atrativas. Os seus olhos eram portugueses; isto é, reflexo perene dos íntimos pensamentos; tempestuosos com as procelas do coração, serenos com a calma dele” (Herculano, 1965: 14). Vasco não representa qualquer português, mas é um estereótipo da nação, sendo representante da tradição e do povo formador da pátria lusitana.
A descrição física de Vasco realizada por um narrador heterodiegético e onisciente já dá indícios ao leitor de como a figura central da narrativa é conflitante e condicionada a “duas poderosas e irreconciliáveis forças: as da passionalidade e as de consciência moral” (Amora, 1965: 6). Vasco, ex-cavaleiro da Ala dos Namorados na Batalha de Aljubarrota (1385), que marca a independência de Portugal perante a Espanha, torna-se monge para aplacar seu ódio e sentimento de vingança movidos pelas desonras sofridas por ele mesmo, quando o seu rival Lopo Mendes se casa com a sua amada, Leonor, na sua ausência; e também contra o ultraje sofrido pelo pai dele e a irmã, Beatriz.
A descoberta de Vasco a respeito dos infortúnios de sua família foi um momento trágico e ocorre durante o enterro de seu pai: “(...) perguntei ao sacristão o nome do morto que jazia em trintário... Era o de meu pai!... Uma faísca de lume me centelhou diante dos olhos: de um pulo eu estava pegado com a porta da igreja: as escamas das minhas manoplas bateram nela como um vaivém (...) abri a tumba: era meu velho pai...era ele!... Com os olhos fechados, não me viu... com os lábios cerrados, não me sorriu... com as mãos cruzadas sobre o peito, não me abençoou!... Arrojei-me sobre ele: beijei-o: era como uma pedra gelada (...). A imagem de meu pai defunto, de minha irmã desonrada, queimava-me o cérebro. Vingança!” (Herculano, 1965: 18).
A partir daí, Vasco se torna uma figura labiríntica e agravada pela dor também da perda de Leonor. O protagonista busca vingança e assassina o rival após perseguição doentia; contudo, passa a sofrer remorso: “Recobrei o sentimento da vingança; mas já não era tão inteiro e violento, porque com ele se misturavam remorsos (...) era o meu crime que me tinha de sua mão (...). Vergava-me o coração debaixo do peso dos remorsos, e todavia, lembrava-me de que ainda me faltavam mais vítimas!” (28-29).
Vasco, acreditando no sacerdócio, procura consolação e perdão na vida religiosa, “mas quando pensava que as penitências e a obediência tinham sufocado a violência de seus impulsos passionais e de vingança, vem o acaso colocá-lo diante do miserável sedutor que lhe infelicitara a irmã; e o sacerdote não pode conter a força violenta do ódio, e leva ao fim, com requinte, a sua vingança” (Amora, 1965: 7). Em vista disso, de herói de guerra e homem forte e saudável, Vasco termina os seus dias corroído pela culpa e volta à sua aldeia irreconhecível, magro, com olheiras, fraco, sendo reservado a ele a morte e um sepultamento fora do solo sagrado: “O desconhecido estava deitado de bruços no pavimento junto de uma campa (...). Horrorizado, o agreste hostiário saiu correndo para a residência do Abade, a quem referiu a estranha aventura. O velho sacerdote dirigiu-se à igreja apressadamente (...). O desconhecido alevantou a cabeça, forcejou por fitar no sacerdote a vista incerta, e com esforço violento proferiu algumas frases entrecortadas pelas garras sufocadoras da morte (...). O pároco fez sinal ao sacristão para que saísse. Teria passado uma hora quando tornou a chamá-lo. O peregrino cessara de existir (...). O sacerdote ajudou a abrir a cova, a descer o corpo e a recalcar-lhe a terra, sem que jamais lhe surgisse dos lábios uma oração, uma palavra sequer” (Herculano, 1965: 225-226).
De acordo com Manuel Trindade, “a própria vida monástica ocupa em Vasco um lugar de pano de fundo muito ténue, e de influência quase nula. São afinal puros elementos extrínsecos que induzem a história de Vasco no universo sacerdotal e o transformam num romance de tema eclesiástico. É a intenção, é o fazer parte do Monasticon que fazem do Monge de Cister um romance sacerdotal – muito mais que o próprio Vasco. Daqui se pode concluir que tanto Eurico como Vasco são padres nos quais os problemas dos homens, em proveito dos quais eles foram investidos da dignidade sacerdotal, não contam. Se sofrem, se debatem com dramas pungentes – tudo isso parte de si próprios, nasce no fundo de si mesmos, e de modo algum é provocado pela tensão existente entre o padre e os seus fiéis” (Trindade, 1965: 176). Para Vasco só há uma preocupação: o sentimento de amor e ódio, que o levou à morte. Assim sendo, o sacerdócio não o salvou das fortes paixões.
Em 1954, o romance ganha uma adaptação em banda desenhada de autoria do brasileiro Eduardo Barbosa.
Referências
AMORA, Antônio Soares (1965). "Apresentação", in Alexandre Herculano, O monge de Cister. São Paulo: Ediouro. 5-7.
HERCULANO, Alexandre (1965). O monge de Cister. São Paulo: Ediouro.
TRINDADE, Manuel (1965). O padre em Herculano. Lisboa: Verbo.
[publicado a 28-04-2018]