Eurico, chamado o Presbítero, protagonista do romance homónimo de Alexandre Herculano, publicado em livro em 1844 (depois de divulgado em folhetim no Panorama e na Revista Universal Lisbonense), corresponde ao arquétipo do herói romântico, consagrando-se como personagem modelar das ficções históricas oitocentistas em língua portuguesa. De origem nobre, chefe do exército visigótico e gardingo na corte, Eurico vê o seu amor por Hermengarda contrariado por Fávila, duque de Cantábria, e fica gravemente doente. A fé e a sensibilidade de poeta levam-no a refugiar-se na religião, tornando-se sacerdote e passando a viver uma vida espartana, de total isolamento do mundo, apenas interrompida pelo amor pátrio que o chama de novo à luta. Nesse momento, transfigurado em Cavaleiro Negro, luta com ferocidade e heroísmo contra o invasor infiel, acabando por ser o salvador da amada, a quem estoicamente renuncia, no final, em respeito pelos votos religiosos. O desespero ontológico e a impossibilidade de concretizar a paixão levam-no, por fim, a entregar-se às mãos do inimigo, numa morte honrada e sacrificial.
Compreender o processo de figuração deste protagonista e entender a sua valorização temática e ideológica implica, pois, que tenhamos em consideração alguns aspetos de cariz histórico-literário, nomeadamente: o género de narrativa que protagoniza – romance histórico – e a sua matriz epocal, o romantismo. Contudo, as repercussões que este herói reconheceu na história da literatura oitocentista não se restringem a este enquadramento, uma vez que o valor de Eurico e a sua sobrevida ultrapassam largamente a tradição que o moldou.
Produto de uma tradição literária europeia, que tem em Walter Scott o modelo inspirador, Eurico ganha, contudo, uma especificidade e uma vida próprias, fruto não só da forma como Alexandre Herculano o trabalha e enquadra na narrativa, mas também dos inúmeros modelos que o inspiram, de Amadis de Gaula aos protagonistas históricos do romance inglês. Fruto de tradições, com reminiscências de diversos heróis da literatura ocidental, Eurico é um herói cuja figuração, bem ao gosto romântico, é híbrida, tal como a narrativa que protagoniza. Esta terá sido, em parte, a causa do grande sucesso que alcançou junto dos leitores e da crítica coeva. Vitorino Nemésio, na introdução que redige para a edição da obra que aqui se segue, insiste na boa fortuna do romance e na fama granjeada pelo seu herói, num fenómeno em que “leitores, discípulos, adaptadores, libretistas precipitavam-se atrás do vulto do Cavaleiro Negro levando o amado fardo através da corrente do Sália...” (Nemésio, 1972: LIII).
Tanto assim foi que Eurico é refigurado em diversas ocasiões, no decurso do século XIX. Uma delas, em 1870, em contexto operático, pela mão do jovem compositor e pianista Miguel Ângelo Pereira; outra, numa composição lírica em tercetos, de 1897, por Martins do Soveral (cf. Nemésio, 1972: LIII). A ópera, mais relevante, apesar do fiasco público da sua exibição, teve o mérito de ser “a primeira tentativa de um compositor nacional se aproximar dos modelos wagnerianos” (Cymbron, 2014: 2). Estreou em S. Carlos e, quatro anos depois, já reformulada, vai ao S. João no Porto e ainda, em 1878, ao Rio de Janeiro, cidade onde o compositor passara a juventude e iniciara os estudos musicais. Embora não tenha chegado aos nossos dias nenhuma partitura completa da obra, os estudiosos explicam o interesse por Eurico com base quer na educação ultrarromântica do compositor, quer ainda no facto de a personagem simbolizar um conjunto de valores nacionalistas e patrióticos, cuja ressonância junto da colónia portuguesa do Rio à época era assinalável (cf. Cymbron, 2014: 3).
A expressão “complexo de Eurico”, cunhada por Vitorino Nemésio, diz bem da perenidade que o herói romântico conheceu ao longo da segunda metade de oitocentos. Ora recuperado como modelo edificante de virtudes pátrias e de uma ética religiosa exemplar, ora satirizado como exemplo anacrónico, o certo é que mesmo os autores da Geração de 70 não lhe foram indiferentes. Recorde-se, a este respeito, que Eça de Queirós, quando descreve o primeiro romance adúltero de Carlos da Maia em Coimbra por uma rapariga com o “nome bárbaro de Hermengarda”, a certo momento recupera, num claro efeito humorístico e crítico, o nome de Eurico, pelo qual Carlos passa a ser sarcasticamente chamado pelos companheiros.
O Eurico de Alexandre Herculano é apresentado, desde o início do romance, como uma personagem dual e moralmente superior, destacando-se das personagens de origem histórica com que convive. Depois de contrariada a sua paixão, impõe-se a si mesmo o presbitério e a vida de isolamento e meditação, afastada do bulício mundano, até ao momento em que o amor pátrio reclama a sua ressurreição na pele de um misterioso Cavaleiro Negro, cujas coragem e ousadia se tornam lenda na luta contra a invasão árabe da Península. Num movimento de renovação cíclica vida–morte–ressurreição, o percurso diegético de Eurico adquire uma dimensão mítica, que culmina com a morte heroica, em que deliberadamente se entrega ao inimigo (cf. Duarte, 1979).
Seguindo a tradição europeia do romance histórico, Eurico, criação puramente ficcional, adquire um protagonismo, desde logo anunciado pelo título do romance, que secundariza quer o intertexto histórico, quer as personagens referenciais com quem convive na diegese. Monarcas, clérigos e guerreiros empiricamente existentes e protagonistas de momentos históricos relevantes do período medieval aqui recriado (a queda do império Godo na Península Ibérica às mãos dos Muçulmanos) são totalmente acessórios, sendo Eurico o motor e o âmago da narrativa: é a sua história individual que conduz a diegese (vejam-se os títulos dos segundo – “O Presbítero” – , terceiro – “ O Poeta” – e quarto – “Recordações” – capítulos que apontam para o percurso e facetas da personagem); é o seu subjetivismo que filtra a leitura política e axiológica dos acontecimentos, anunciando, inclusive, em tom profético, os infortúnios da nação Goda [veja-se o sonho de Eurico descrito no capítulo VII, “A Visão”]; é a sua voz e o seu olhar que regem o foco narrativo nos momentos cruciais (recordem-se as cartas que escreve a Teodemiro, alertando-o para a traição de que estava a ser vítima e para a invasão iminente do reino).
Trata-se, de facto, de um romance disjuntivo, para usar a terminologia de Harry Shaw (apud Marinho, 1992: 104), no qual o destino do herói é indiferente ao curso da História e vale, sobretudo, pelo que significa em termos axiológicos e antropológicos. Eurico, imerso num contexto histórico cuidadosa e detalhadamente desenhado pelo narrador no primeiro capítulo, convive com Teodemiro e Pelágio, combate pela honra pátria dos Godos contra os invasores muçulmanos, mas representa, sobretudo, uma história individual exemplar e marcada pela excecionalidade. Mesmo a intenção, que o autor enuncia claramente no prefácio, de fazer desta narrativa uma forma de reflexão sobre o sacerdócio, é secundarizada pela centralidade da personagem e pelo que enxerta de profundamente singular na sua história: a resiliência, o elevado conceito de honra, a luta contra os constrangimentos sociais, o estoicismo com que encara o sofrimento, a capacidade de renúncia.
Dificilmente se consegue projetar um perfil físico da personagem, pois essas notações escasseiam em prol de um investimento nas suas qualidades morais. Como um verdadeiro herói romântico, Eurico percorre um caminho de obstáculos, sendo o maior deles a sua própria consciência e os valores que ortodoxamente professa (recorde-se que, no final, quando percebe que o amor por Hermengarda era, afinal, correspondido, a ele renuncia estoicamente). Ser isolado, marginal em relação aos outros, em permanente luta contra a sociedade e suas leis, Eurico, quer enquanto presbítero de Carteia, quer como poeta litúrgico, quer ainda na sua incarnação de cavaleiro envolto numa aura de mistério, é um ser solitário e diferente, incapaz de conviver no mundo material e prosaico dos homens. Embora os heróis que a literatura, o cinema e a animação consagraram ao longo do século XX e XXI sejam bem distintos de Eurico, o certo é que algumas qualidades deste perduram ainda num Batman ou num Spiderman: a exemplaridade, o isolamento, a excecionalidade moral e o rigor ético de vida.
Referências
CYMBRON, Luísa (2014). “Na sombra de Herculano: Miguel Ângelo Pereira e os desafios de compor ópera no Portugal dos anos 1860-70”. Arbor: Ciencia, Pensamiento y Cultura. 766: 190-205, disponível em http://dx.doi.org/10.3989/arbor.2014.766n2004 (consultado a 09/2016).
DUARTE, Lélia (1979). “A estrutura mítica do herói em Eurico, o Presbítero”. Revista de Letras. 1.3: 14-25.
HERCULANO, Alexandre (1972). Eurico o Presbítero. O Monasticon, Tomo I. Edição de Vitorino Nemésio. Lisboa: Bertrand.
MARINHO, Maria de Fátima (1992). “O romance histórico de Alexandre Herculano”. Revista da Faculdade de Letras: Línguas e Literaturas. 2. 9: 97-117.
NEMÉSIO, Vitorino (1972). “Eurico: história de um Livro”, in Alexandre Herculano, Eurico o Presbítero. O Monasticon, Tomo I. Lisboa: Bertrand. Vii-lv.
[publicado a 03-10-2016]