De eclesiástico a truão heroico, essa é a trajetória do protagonista Dom Bibas do romance O Bobo, publicado primeiramente nas páginas da revista O Panorama (1837-1868), de Lisboa, em 1843, e em volume postumamente em 1878. O Bobo é um típico romance histórico no qual se encontram dois planos em confluência: o primeiro, romanesco, construído nas margens da ficcionalidade; e o segundo, histórico, na ambientação do século XII, momento que marca o conflito entre mãe e filho, D. Teresa de Leão e o infante Afonso Henriques, situação de disputas políticas que resultaram na independência de Portugal. A respeito disso, Paulo Motta Oliveira afirma que em O Bobo “não estamos diante de uma região periférica, mas no próprio epicentro de uma crise que terá, como consequência, a batalha de S. Mamede e a futura criação de Portugal (...)” (Oliveira, 2000: 142).
Dentro desse cenário histórico de intrigas, destaca-se na trama ficcional o personagem Dom Bibas, um bobo da corte que vivia no castelo de Guimarães, que “não era lá nenhum grande homem: era um vulto de pouco mais de quatro pés de altura; feio como judeu; barrigudo como um cônego de Toledo; imundo como a consciência do célebre arcebispo Gelmires; e insolente como um vilão de beetria” (Herculano, 1997: 23). Na descrição inicial do protagonista, Alexandre Herculano desconstrói a idealização do herói romântico moldado na beleza física e nos feitos heroicos e presenteia o seu leitor com uma figura satírica e grotesca como símbolo na luta pela independência e origem da nação portuguesa.
O sarcasmo e a ironia de Dom Bibas em contraposição aos heróis românticos por excelência podem ser um dos motivos da ausência de referência de O Bobo no volume V da História da Literatura Portuguesa, de Teófilo Braga, já que o personagem figura uma inversão de valores em relação à condição corajosa e heroica para um protagonista romântico. Ademais, Dom Bibas é a representação do próprio escárnio acerca da ideia de sacralidade da fundação de Portugal, motivo que deixaria a obra em questão à margem da historiografia de Teófilo Braga.
Inspirado como um “trovista” e elegante como um “folião” (Herculano, 1997: 24), o bobo “era ao mesmo tempo juiz e algoz” e “ele ria: ria contínuo! Era rir diabólico o do bobo: porque nunca deixava de ir pulsar dolorosamente as fibras de algum coração. Os seus ditos satíricos, ao passo que suscitavam a hilaridade dos cortesãos, faziam sempre uma vítima” (26).
No castelo de Guimarães, Dom Bibas era um oblato do mosteiro de D. Muma na juventude, quando decidiu trilhar novos caminhos, abandonando a vida monástica. Da cena de sua saída, o leitor se depara com a figura cômica e irônica que percorrerá toda a narrativa: “Atirou às malvas o hábito, a que desde o berço o tinham condenado: e, ao cruzar a porta do ascetério, escarrou ali em peso o latim com que os monges começavam a empeçonhentar-lhe o espírito (...) voltou-se para o mui reverendo porteiro (...) gritando-lhe com uma visagem de escárnio – racca maranatha, racca maranatha (...)” (23).
Na cena em que o bobo ouve a conversa entre o Conde de Trava e Garcia Bermudez, há uma mudança no comportamento de Dom Bibas, pois ao receber uma punição, ordenada pelo conde, de doze chicotadas, ali o protagonista implora, mas é arrastado para o castigo e ele próprio afirma: “O bobo receberá essa afrontosa pena; mas ele se converterá num demônio (...)” (63). Após esse fato, o narrador apresenta um Dom Bibas vingativo e questionador dos valores como a lealdade e a liberdade individual.
Dom Bibas passa a desempenhar um papel significativo na trama narrativa da história de Portugal, quando facilita a fuga dos aliados de Afonso Henriques pela passagem subterrânea que só ele conhece, recusando ser servo de Fernando Peres de Trava, o qual é sujeito das graças do truão ao longo do enredo: “Nunca Dom Bibas revelara o descobrimento casual que fizera. Este homem, que nada possuía, quisera ao menos possuir um segredo. E na presente ocasião aquela inocente avareza lhe punha nas mãos um rico tesouro, o cumprimento dos seus vingativos desejos. A entrada do subterrâneo era longe, e o bobo, atravessando-a algumas vezes, tivera o cuidado de tornar ainda mais cerradas as balsas, sarças e troncos que a encobriam. A ideia que lhe ocorrera ao ouvir a conversação do conde e do alferes-mor fora a de fazer servir este caminho desconhecido ao ódio que o devorava” (104).
Dom Bibas é um personagem único na obra herculiana que caiu no gosto burguês da época, podendo ser concebido como a representação do povo oprimido diante da opressora sociedade feudal, o qual passa a realizar as suas ações de forma vingativa em consequência de anos de sofrimento e opressão das políticas públicas de Portugal no século XII. Em vista disso, Dom Bibas, de forma alegórica, simboliza a luta dos mais fracos contra a nobreza da época.
Personagem de fôlego, Dom Bibas ganhou uma representação iconográfica (por Fernando Heitor) na adaptação cinematográfica dirigida por José Álvaro Morais, em 1987. Por sua vez, José Jorge Letria escreveu uma versão d'O Bobo para jovens, com ilustrações de Carla Nazareth. Na banda desenhada, merecem registo duas versões por José Ruy.
Referências
HERCULANO, Alexandre (1997). O Bobo. São Paulo: Ática.
OLIVEIRA, Paulo Motta (2000). “Alexandre Herculano: malhas da história, armadilhas da ficção”, in Maria Cecília Bruzzi Boëchat; Paulo Motta Oliveira e Silvana Maria Pessôa (orgs.), Romance histórico: recorrências e transformações. Belo Horizonte: FALE/UFMG. 129-150.
[publicado a 01-04-2018]