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Maria Moisés

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Autor: Capa de edição da Porto Editora.

Maria Moisés (Camilo Castelo Branco, Novelas do Minho)

Filha de Josefa de Santo Aleixo e de António de Queirós e Meneses, Maria é a heroína da segunda parte do conto epónimo. Conhecemos a sua história ab initio, desde que Francisco Bragadas ouviu o choro de uma criança, na noite de 27 de agosto de 1813, nas margens do Tâmega, onde pescava. O caseiro de Santa Eulália recolheu o recém-nascido do berço de junco e entregou-o a Isabel, a mãe dos seus onze filhos, para que o amamentasse, enquanto ia comunicar aos fidalgos o episódio.

A casa de Santa Eulália era habitada, no verão, pelo desembargador Teotónio Valadares e pelas  suas irmãs, D. Maria Tibúrcia e D. Maria Filipa, sempre acompanhados pelo cónego de Braga, João Correia Botelho. A notícia, de contornos milagrosos, foi bem acolhida pelos presentes que de imediato se predispuseram para cuidar da menina, batizando-a no dia seguinte, a 28 de agosto de 1813, em São Bartolomeu, no mesmo dia em que a mãe, Josefa, foi sepultada em Santo Aleixo.

A escolha de um sobrenome para a enjeitada é um dos fatores que mais contribui para o relevo diegético da personagem e, por conseguinte, para a sua figuração. Tendo em conta as circunstâncias do seu aparecimento, o cónego João Botelho sustenta a tese de que o milagre da sua salvação se compara ao de Moisés, “o mais verídico historiador do género humano” (Castelo Branco,  1998: 275), e o desembargador a de que o mesmo milagre correspondia, na história lusitana, ao de Ábidis, relatado por Bernardo de Brito no “tomo I da Monarquia Lusitana” (277). Entre Maria Moisés e Maria Ábidis, prevalece o primeiro, uma vez que o cónego rejeitaria um nome de família cuja origem residisse numa “invencionice” (281) de historiador, opinião com a qual o narrador heterodiegético, em nota de rodapé, ironicamente concorda.

Por outro lado, o nome e o sobrenome, ambos de conotação religiosa, prenunciam o nobre objetivo que a personagem delineia para a sua vida, depois do falecimento dos padrinhos e após dois anos passados no convento das Teresinhas em Braga: o de recolher crianças órfãs e enjeitadas colocadas pela Providência divina à sua porta, na quinta de Santa Eulália, herança dos seus benfeitores. Muito embora fossem conhecidas decisões semelhantes à de Maria – a de uma viúva francesa detentora de um asilo de expostos nas imediações de Saint-Landry, ou a de Isabel Lhuiller que auxiliara São Vicente de Paulo no abrigo concedido a crianças abandonadas - o cónego Correia Botelho considerava que semelhante propósito não se adequava a uma menina solteira, personificação da “pureza e candura de tantos anos em flor” (283). Não menos elevados são os desígnios da heroína de apoiar monetariamente os mais necessitados ou de ajudar jovens surpreendidas por um destino que lhes anunciava dias de clausura por se acharem ‘perdidas’, como aconteceu com Joaquina, filha de Bragadas. Neste sentido, a dignidade dos seus atos, a sua inquestionável benemerência e dedicação aos infelizes preconizam a remissão do ‘pecado’ cometido pela mãe, uma finalidade não menos relevante na economia da narrativa.

A caraterização da heroína é essencialmente psicológica e decorre de testemunhos de outros agentes diegéticos que lhe enaltecem a fama granjeada enquanto “mãe dos pobres” e, por conseguinte, como “santa Moisés”. As palavras de Padre Bento Fernandes da Póvoa, segundo quem Maria tinha no “rosto a formosura da alma” (296), permitem a subtil transição para a breve caraterização física, através da focalização de António de Queirós e Meneses, o general regressado do Império brasileiro: Maria era “alta, refeita, loura e bela”. Por intermédio do juiz Fernando Gonçalves Penha e de Padre Bento que, com a nobre finalidade de juntar pai e filha, decide infringir o segredo da confissão, António de Queirós pode então observar as semelhanças entre Maria e Zefa: “era o retrato de sua mãe favorecido pela palheta de artista caprichoso que desadorasse as fortes e vivas cores das formosuras do campo; era Josefa de Santo Aleixo depois de respirar em dez invernos o ar do Teatro de S. Carlos” (300).

Aos atos de semiotização acrescentam-se dispositivos de conformação acional que completam a figuração dinâmica da personagem. O episódio do reconhecimento acentua a dramaticidade da narrativa. Ao expor em discurso de primeira pessoa parte da sua história pessoal, a protagonista afirma: “Custa a crer que minha mãe, com suas próprias mãos, me entregasse à corrente de um rio…”. Maria Moisés não supunha que o benfeitor interessado na compra da quinta de Santa Eulália - facto que lhe permitiria saldar as dívidas entretanto contraídas em função dos atos de beneficência - fosse seu pai. Concretizada a venda, o general exprime o desejo de que um anjo o assistisse na morte, a filha: “ – Eu! Jesus! Eu sua filha!” (303). A revelação do segredo familiar é um ingrediente melodramático tipicamente camiliano.

O conto evidencia, ainda, uma íntima relação com teorias filosóficas e literárias da época, bem como com episódios políticos dos séculos XVIII e XIX. Assim, o elevado número de crianças desvalidas confirma a dissolução dos costumes portugueses, consequência dos ideais republicanos vindos de França, na perspetiva do fidalgo; por outro lado, o clima de instabilidade política anterior à Regeneração plasma-se no posicionamento distinto dos elementos do clero: adepto da fação liberal, o cónego bracarense, e da absolutista, padre Bento da Póvoa, que ansiava pelo regresso de D. Miguel.

No que se refere à sobrevida da personagem (Reis: 2015), isto é, à sua existência para além do texto ficcional que integra, há a referir os desenhos de Paula Rego expostos na Galeria 111, no Porto, em 2000-2001 (Lima: 2002): se por um lado denotam uma interpretação icónica da heroína mais ténue e ideologicamente menos marcada, quando comparada com a de Josefa de Santo Aleixo, a verdade é que destacam o seu indiscutível protagonismo através do título que os congrega, Maria Moisés e outras histórias.

 

Referências:

CASTELO BRANCO, Camilo (1998). “Maria Moisés”, Novelas do Minho, in Justino Mendes de Almeida (Dir.), Obras Completas, vol. VIII. Porto: Lello & Irmão – Editores. 239-307.

LIMA, Isabel Pires de (2002). “Diálogos Intertextuais: Camilo/Paula Rego (Acerca de Maria Moisés)”, Revista da Faculdade de Letras, «Línguas e Literaturas», Porto, XIX, pp. 339-352. Disponível na Internet em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4768.pdf (acedido a 04.07.2015).

REIS, Carlos (2015). “Pessoas de Livro: Figuração e Sobrevida da Personagem”, in Pessoas de livro. Estudos sobre a Personagem. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. 119-143.

Maria Eduarda Borges dos Santos