Personagem principal da primeira parte do conto "Maria Moisés", filha dos lavradores Maria e João da Laje, Josefa ou Zefa, a “loura de Santo Aleixo”, era uma bela e virtuosa “mocetona”, que se apaixonara, no bosque da Ínsua, no Tâmega, pelo morgado do Cimo de Vila, António de Queirós e Meneses, de vinte e dois anos, “magro e pálido, da palidez dos que amam” (Castelo Branco, 1998: 256).
Enquanto narrativa in medias res, inicia-se com a identificação, por parte de um pequeno pastor e do moleiro Luís, de uma voz suplicante enlaçada em choro, que Bragadas, o pescador, afirmava vir da ilha do Tâmega, certa noite de agosto de 1813. Seguindo o som, deparam com um corpo feminino, ainda com vida, que salvam da corrente do rio. Era Josefa, implorando ajuda, porque morria “sem confissão”, como viria a acontecer. O tio Luís transporta-a até uma fraga: “os braços pendiam inertes”, “a cabeça balançava”, ritmada pelos passos do moleiro, cada vez mais céleres, devido “ao terror do cadáver que lhe parecia esfriar nos braços” (249).
Juntam-se, em torno da defunta, personagens intrigadas com o facto: o pai, advertido pelo Zé da Mónica, o pastor, tenta perceber o sucedido, inquirindo, em vão, a filha, que “parecia viva, porque tinha os olhos abertos”; a Brites, já que a vira, ao fim da tarde, “meter para o lado do rio” (249); o Vigário; a mãe desesperada e incrédula da morte da filha. No funeral, Padre Bento, ciente da razão pela qual Josefa se atirara ao rio, acaba por revelar parte do segredo. A alternância de pontos de vista confere verosimilhança à história e incute-lhe um dramatismo que obriga personagens e leitores a um constante movimento psicológico e emocional na tentativa de resolução do enigma. Todavia, a analepse elucidativa das razões que levaram a jovem, vítima de amores contrariados, a tomar tal decisão, é da responsabilidade do narrador omnisciente que, numa atitude metalética, se dirige ao leitor: “Ora vamos à história, já que me coube em sorte arpoar com pena de ferro (…) as frases do meu tempo.” (255)
Para a relevância diegética de Zefa, correlativa do seu processo de figuração (Reis: 2015), contribuem o mistério da sua morte (congregando a atenção de personagens de todas as classes sociais, com crenças e ideologias próprias – devotos e ateus; jacobinos e monárquicos –, componentes de uma geografia humana bem conhecida do autor) e a relevância dos espaços, presente na oscilante impositio nominis, entre Josefa de Santo Aleixo e Josefa da Laje: entre a região minhota onde vivera e o nome de família que, dramaticamente, remete para a sua sepultura.
Nos montados de Santo Aleixo, enamorara-se do cadete, estudante em Coimbra. O lugar, onde pastoreava o seu rebanho e onde se dedicava à caça e à pesca, quando se encontrava de férias, combinava as particularidades da natureza no seu estado primitivo, “insinuando o amor selvagem”, com o locus amoenus de uma “Ilha dos Amores” onde crescia a paixão entre ambos, comparada à de “Florisa” e “Felício”, pastores de Fernão d’Álvares d’Oriente (253). Aqui voltam a encontrar-se na primavera e, pela face de Zefa, correm lágrimas de preocupação uma vez que a mãe se norteava pelo “orgulho selvagem da honra” (268). António, tendo-lhe prometido, meses antes, casamento, aborda o vigário de Santa Marinha, mas este denuncia-o ao pai, Cristóvão de Meneses. O fidalgo, para manter a linhagem da família, procura ligar, pelo matrimónio, o filho a uma jovem aristocrata, mas o morgado recusa, afirmando que só casaria com “uma rapariga de baixa condição” (260) a quem dera a sua palavra. Cristóvão de Meneses intercede junto das autoridades e o filho é preso no Limoeiro.
O decurso dos dias não traz a Josefa quaisquer notícias; sem saber escrever, não consegue comunicar com o pai de seu filho. Vive enclausurada no quarto, para que a mãe de nada se aperceba. Certo dia, visita-a uma benzedeira que lhe transmite o plano de António: devia fugir de casa e ir ter à quinta do Enxertado, onde o feitor a recolheria até ele voltar de Lisboa.
Josefa apenas contou consigo mesma quando a criança nasceu. Depois, cumpriu o ajustado com a benzedeira. Com uma saia azul sobre a cabeça, correu para fora de casa, apertando o berço da criança ao peito. Ia para a ourela do Tâmega, onde se encontrava com António; tentou amamentar a filha; tinha de atravessar as Poldras, mas não encontrou forças e a canastrinha foi levada pela corrente; tenta alcançá-la; mete-se ao rio, em vão. Não menos importante para a caracterização da protagonista é a densidade dramática contida nas diminutas frases que pronuncia: de súplica, para que a salvem; de alegria quando tem notícias do amado e de receio por o saber preso; de coragem para fugir e de medo de se perder no caminho.
Como é próprio do conto, a ação é condensada, a narração rápida mas plena de realismo. Na primeira parte de “Maria Moisés”, apenas vinte e quatro horas separam o momento em que Josefa é encontrada agonizante, daquele em que se realiza o seu funeral, antecipado devido ao “fedor da podridão” (250) exalado pelo corpo. Um ano e três dias medeiam o exorcismo a que a heroína fora sujeita durante a romaria de São Bartolomeu, a 24 de agosto de 1812, e a sua morte, a 27 de agosto de 1813. Na segunda parte, de Zefa só resta a imagem, inalterada, na lembrança de António de Queirós; pois em 1850, regressado do Brasil onde seguira a carreira militar após o ‘suicídio’ da protagonista, ainda mantinha pungentes, na alma, “as recordações de Josefa de Santo Aleixo”, mãe da menina que vem a encontrar, Maria Moisés.
Em plena fase de maturidade literária, Camilo denuncia a intransigência parental face a jovens cuja paixão dá vida a novas vidas, conduzindo-as, por esse motivo, a lances trágicos. Neste sentido, Josefa ganha a amplitude do tipo característico da mulher apaixonada do Romantismo, forte de alma e capaz de lutar pela sua felicidade. Contudo, o autor procura distanciar-se da tendência romântica por um efeito de estilo e de interpretação realista, caricaturalmente expressa, quando pela voz do narrador declara: “A gente, que escreve casos tristes, se não lhes joeirasse a parte cómica, não arranjava nunca uma tragédia.” (261-262)
Para a sobrevida da personagem contribuiu a reinterpretação do conto por Paula Rego através de cinco composições, Maria Moisés e outras histórias, expostas na Galeria 111, no Porto, em 2000-2001 (Lima: 2002). A pintora realça temas intimamente ligados aos estados da mulher (como filha, mulher e mãe), motivo de (des)construção da identidade feminina na sociedade patriarcal portuguesa do século XIX, temas que o tempo teima em fazer perdurar: a gravidez indesejada, a incompreensão familiar e social, o parto, a solidão.
Referências
CASTELO BRANCO, Camilo (1998). "Novelas do Minho: Maria Moisés”, in Justino Mendes de Almeida (dir.), Obras Completas, vol. VIII. Porto: Lello & Irmão – Editores. 239-307.
LIMA, Isabel Pires de (2002). “Diálogos Intertextuais: Camilo/Paula Rego (acerca de Maria Moisés)”. Revista da Faculdade de Letras: Línguas e Literaturas. 19: 339-352, disponível em http://ler.letras.up.pt/uploads/ficheiros/4768.pdf (consultado a 04/07/2015).
REIS, Carlos (2015). “Pessoas de Livro: Figuração e sobrevida da personagem”, in Pessoas de livro. Estudos sobre a personagem. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra. 119-143.
[publicado a 03-09-2018]
Maria Eduarda Borges dos Santos