Personagem principal de O Arco de Sant’Ana (1845-50), de Almeida Garrett, Vasco é um jovem estudante de 19 anos que as circunstâncias transformam em herói imprevisto duma revolução. A ação deste romance histórico decorre na época medieval (século XIV), na cidade do Porto, então dominada por um bispo muito poderoso que explora e oprime a população. Vasco, protegido do bispo, vive feliz e despreocupado até ao momento em que o rapto de uma mulher incendeia a rebelião; encorajado pela namorada, Gertrudes, ganha consciência política e decide participar ativamente no movimento de libertação da cidade. Ao emancipar-se da alçada do bispo – que o destina para clérigo, quando ele sonha estudar medicina em Salamanca – apercebe-se da estranha situação de privilégio de que sempre beneficiou; e da ainda mais intrigante vigilância de uma velha mendiga judia (conhecida como a Bruxa de Gaia). Virá a saber, dilacerado, que é filho natural de ambos: a mãe fora vítima de abuso e depois privada da criança pelo mesmo homem que a proscreveu. Vasco fica então dividido entre dois fogos: da parte da mãe um ódio mortal exige-lhe reparação; mas na hora da vingança não consegue repudiar o homem impiedoso a quem deve, apesar de tudo, verdadeiro afeto paternal.
São estes, em resumo, os ingredientes melodramáticos que enquadram a simpática figura de Vasco, cuja figuração evolui do cavaleiro aventuroso para o herói romântico. Essa evolução é aliás perceptível no processo de composição do romance, em que coexistem diferentes tipos de caracterização. Numa primeira fase é apresentado em tom ligeiro e irónico, por técnica dramatúrgica – daguerreotipando-se, como explica o narrador, “à luz de seus ditos e gestos” (Garrett, 2004: 92); pouco sabemos dele além da galhardia e do “móbil espírito” de um temperamento apaixonado. Gradualmente observa-se o esforço do autor no sentido de conferir densidade psicológica à personagem, com acrescentos textuais significativos.
Há um episódio simbólico em que o narrador antevê sombrias mudanças na vida do estudante descuidado, prestes a perder a inocência juvenil (cap. VII). Vasco vai conspirar contra “os opressores da sua terra”; em breve será aclamado como capitão da revolta popular mas ignora ainda os novos dilemas que o aguardam: “Como há de a singeleza de um coração jovem e não calejado ainda pelo trilhar das injustiças do mundo, meter-se a conciliar, a abrigar dentro do mesmo peito afetos e sentimentos tão opostos?” (105). Mais tarde enfrentará momentos dolorosos de divisão interior, quando, já após a anagnórise da sua origem pecaminosa, se recusa a exercer a vingança política que todos reclamam. Vendo o bispo (o pai) deposto e humilhado pelo rei D. Pedro I, segue o impulso generoso de o defender e ampara-o no caminho da deportação.
A ambivalência tonal do romance, ora cómico ora dramático, retira alguma dimensão e autonomia à personagem – é de notar que se trata de um dos primeiros romances portugueses modernos. Nas mãos de um narrador irónico, Vasco não chega a atingir a complexidade típica do herói romântico, como acontecerá com Carlos, de Viagens na Minha Terra, que em grande medida nele se inspira. De qualquer modo, o facto de terem surgido, nos anos seguintes à publicação da obra (2 vols. 1845, 1851), várias adaptações teatrais, como a dirigida por Júlio Cardoso em 1999; e uma ópera (com libreto de Francisco de Sá Noronha, levada à cena em 1868) leva-nos a considerar que o estudante-caudilho terá despertado bastante interesse no público.
Referência
GARRETT, Almeida (2004). O Arco de Sant’Ana. Crónica portuense. Edição crítica de M. Helena Santana. Lisboa: INCM.
[publicado a 12-10-2016]