Personagem de O Arco de Sant’Ana, de Almeida Garrett, o Bispo do Porto (que nunca recebe nome) inspira-se numa figura histórica de má memória, evocada por Fernão Lopes na Crónica de El-Rei D. Pedro. O episódio que o envolve é aí sucintamente relatado no cap. VII, “Como El-Rei quisera meter um bispo a tormento porque dormira com uma mulher casada”. Garrett tira partido desta narrativa (centrada no castigo moral intentado pelo rei Justiceiro) para desenvolver uma figura romanesca adaptada a um romance histórico de fortes contornos políticos.
A situação ficcional – uma revolta popular contra o poder discricionário do bispo – reporta-se à Idade Média mas tem implicações diretas no contexto do cabralismo, nos anos 40 do século XIX: não só o bispo passa a desempenhar o papel de vilão face ao povo portuense, explorando-o e oprimindo-o, como o seu castigo serve de exemplo aos adeptos do regime autocrático vigente. Tratava-se, mais concretamente – segundo o Autor explica no Prólogo da 1ª edição (publicada anónima, em 1845) – de denunciar os perigos da “reação” antiliberal por parte da “oligarquia eclesiástica” (Garrett, 2004: 59) que voltava a rodear os bastidores do poder.
Embora o bispo não seja o protagonista, a sua composição é a mais elaborada das personagens do romance, seja pelas características negativas de que se reveste (algo exageradas na primeira parte), seja pela posterior evolução, em que se complexifica e humaniza. No capítulo inicial da obra, a tirania do bispo é denunciada numa conversa conspirativa entre duas mulheres; uma delas, Aninhas, a boa esposa de um ourives, recebeu ameaças de sedução e em breve será raptada a mando do abusador. Mais adiante a prepotência do clérigo revela-se de viva voz, quando em privado despreza os inimigos e o próprio rei “tão senhor sou eu em meu feudo como ele em seu reino” (Garrett, 2004: 96); já em público, o domínio da sua majestática presença consegue conter o povo amotinado e os magistrados. Apenas em relação a Vasco, seu protegido, demonstra preocupação e afeto, e apenas o estudante rebelde lhe faz claudicar os gestos de autoridade. Adivinha-se um segredo: saber-se-á depois que é seu filho natural.
No 2º volume da obra, só publicado em 1851, Garrett teve ensejo de apurar a técnica narrativa no que respeita aos processos de caracterização. Através do foco introspetivo de Vasco, dá-se a conhecer o lado humano do bispo, que “sempre fora bom, generoso, indulgente, carinhoso como um pai” (Garrett, 2004: 196); e o próprio narrador concede ao vilão o benefício da dúvida, ao afirmar que “este pecador escandaloso não era contudo um monstro: era um homem perdido do vício, cego do poder, corrupto pela riqueza” (Garrett, 2004: 256). Como tantos, no passado e no presente, é vítima de uma juventude desmoralizada, e da cultura de violência adquirida nos campos de batalha; a vivência religiosa chegara-lhe deformada e acedera ao episcopado por interesses e jogos de poder.
Esta reflexão justificativa é pretexto para uma analepse, onde se retrocede ao tempo da juventude do bispo e ao pecado antigo que lhe atormenta a consciência. Era ele então um cavaleiro, comandante de um grupo de guerrilheiros, e ficara ferido numa emboscada, perto de Leiria. Recolhido por um bom samaritano – o médico judeu Abraão Zacuto (passe o anacronismo) – foi tratado com desvelo pela filha deste, Ester. Uma noite, quando velava o enfermo, Ester foi por ele seduzida, estando meio-adormecida. Quando se consciencializou do crime fugiu de casa, repassada de dor e de vergonha, provocando um desgosto fatal aos pais. O cavaleiro, inteirado do sucedido, foi encontrar a fugitiva num palheiro, doente e na miséria; na altura intercedeu pelo seu acolhimento, mas só voltaria dois anos depois para raptar o filho que entretanto nascera. Ester desapareceu de novo e reaparece mais tarde sob um disfarce irreconhecível: é ela a misteriosa “bruxa de Gaia”, uma velha excêntrica que vigia Vasco e o protege, preparando na sombra a desejada vingança. O cavaleiro, elevado a bispo, nunca mais se libertou do remorso e duma certa melancolia, mas a crueldade permaneceu: “Desgostoso da vida parecia, – disposto a emendá-la, não” (Garrett, 2004: 271).
Fica assim preparada a transformação psicológica da personagem, agora dotada de densidade humana e de maior verosimilhança aos olhos do leitor. As estratégias discursivas também se alteram: os pensamentos do bispo são verbalizados através de longos monólogos autocríticos, em discurso fragmentário, permeados de comentários do narrador. Esta técnica, muito moderna ao tempo, permite expor em focalização interna os impulsos contraditórios da personagem. Os próximos capítulos ilustram, de forma mais encenada, o conflito interior com que se debate: num primeiro momento, perante a inocente Aninhas, o remorso parece vencer, mas os maus instintos prevalecem; será preciso esperar por um segundo episódio – o tumulto popular que invade o Paço e o confronto dramático com Vasco, capitão da revolta – para assistirmos, em cenas melodramáticas, ao processo final de culpa e expiação.
Passa da meia-noite quando os sinos da Sé chamam o povo a uma inusitada solenidade, onde se decidiria da soberania da cidade face aos antigos privilégios episcopais. Anuncia-se uma luta feroz entre os revoltosos e as forças fiéis ao bispo, que se resolve com a chegada surpreendente do rei: usando da sua habitual desenvoltura, D. Pedro toma as chaves e o pendão da cidade, obriga o bispo a depor as insígnias e manda prendê-lo. Tudo o acusado aceita sem reagir, exceto o pedido de clemência de Vasco, o seu filho amado apesar de inimigo: “O sangue acordou à voz do sangue, e a sua vida despertou em Deus” (Garrett, 2004: 347). Lágrimas contritas e humilhação redimem o coração do pai, agora despojado de todo o poder.
O epílogo dá breves informações sobre o destino da personagem: amparado por Vasco, arrastou-se para fora da Igreja e foi conduzido à margem do rio, onde seguiu viagem para Bruges. “Assim se despediram, e assim se foi só o desterrado: dizem que lá se fizera monge e acabara em santa vida” (Garrett, 2004: 360). Termina em apoteose o romance, celebrando a vitória coletiva da cidade sobre o opressor, mas com uma nota de melancolia, ao associar vencidos e vencedores nas malhas de um drama familiar.
A personagem transcende o universo desta narrativa com a publicação da ópera com libreto de Francisco de Sá Noronha levada à cena em 1868; e com a encenação dirigida por Júlio Cardoso em 1999.
Referência
Garrett, Almeida (2004). O Arco de Sant’Ana. Crónica portuense. Edição crítica de Maria Helena Santana. Lisboa: INCM.
[publicado a 04-07-2018]