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Júlia Grei

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Autor: Capa da 2ª edição

Júlia Grei (Lídia Jorge, Notícia da cidade silvestre)

Maria Júlia Matos Grei é a protagonista e principal narradora de Notícia da cidade silvestre (1984), o terceiro romance publicado por Lídia Jorge, uma "narrativa psicológica e realista" (Jorge in Reis, 2025: 179) na qual a paisagem rural do Algarve que até então marcara as histórias e personagens de O dia dos prodígios (1980, ver Carminha e Carminha Rosa) e O cais das merendas (1982) dá lugar a uma Lisboa em que a vida se revela particularmente "selvagem", "o instinto e a inocência amalgamados" (Jorge in Ferreira, 2009: 343) com especial relevo na figura de Júlia.

Pequenina, "um metro e sessenta de mulher" (Jorge, 1984: 5), Júlia Grei constrói-se de início como o oposto de Anabela Cravo, uma amiga por quem ela nutre um afeto profundo, que parece ajudá-la em momentos críticos e a quem tem dificuldade em negar o que quer que seja: "o contraste que eu imaginava haver entre nós era tão grande que chegava a supor que se um apito de navio por ali ancorado fosse só um pouco mais forte, talvez isso bastasse para me deitar ao chão" (17). A aparente fragilidade de Júlia contribui para que, com frequência, ela seja o elo fraco de relações de poder como as que se estabelecem com esta amiga e com alguns dos homens com quem se envolve, a começar pelo seu falecido marido, David Grei, um professor 25 anos mais velho que ela conhece aos 17, de quem engravida e com quem se casa, abandonando os estudos (13, 93-95).

O tempo da narrativa é já o da viuvez de Júlia. Nascida em 1950, a personagem perde o marido em 1975 e vai morar com o filho Jóia no atelier húmido e sem janelas em que David Grei trabalhava como escultor. Aí vive quase três anos, a criar o filho sozinha, com um emprego precário numa livraria que é complementado pelo dinheiro que recebe de Anabela Cravo, em troca de lhe ceder o atelier para encontros amorosos (206, 59, 101-102). Quando consegue enfim arrendar "uma casa que dava para a Igreja de S. Mamede", Júlia ganha espaço e autonomia e entrega-se a uma forte paixão por outro escultor, Artur Salema, outrora alvo de ciúmes e invejas de Anabela Cravo, que por esta época se afasta de Júlia, na sequência de um episódio em que Jóia flagra, na nova casa, a amiga da mãe com um amante (179, 198-215).

Estes e outros elementos que compõem a história de Júlia nos são apresentados como uma espécie de puzzle, com peças que se vão somando e encaixando, sem que o quadro, resultante de um fragmentário processo de rememoração, jamais fique completo. O percurso da personagem é caracterizado por um movimento de luta por sobreviver e ao mesmo tempo afirmar-se como protagonista da sua própria história, e isso passa pela narração e pela escrita: Notícia da cidade silvestre é estruturado como um monólogo de Júlia dirigido a um interlocutor não nomeado com quem ela conversa numa mesa de bar e a quem dirige cartas, já num tempo futuro ao do período pós-revolucionário em que decorre boa parte da história, marcada pelo trauma da quase perda do filho. Nesse contexto, Júlia tem bem presente e enuncia a subjetividade do seu relato, das suas escolhas e lacunas narrativas: "os passos duma pessoa vistos da frente para trás são bem outros como V. sabe porquê", "omito drasticamente, como vê", "queria interpretar o passado como entendesse, que assim fazia a Política com a História, que era só uma, quanto mais uma pessoa com a sua vida simples" (226, 257, 317).

Pelo olhar sensível e crítico de Júlia, personagem com uma enorme capacidade de empatia, o romance aborda temas como a maternidade, o aborto, o suicídio, a violência mas também a ternura das relações humanas, que não poderiam deixar de ser atravessadas pelo contexto em que emergem. Nesse sentido, desde a guerra colonial até à censura e ao silenciamento do salazarismo e do marcelismo, passando pela Revolução dos Cravos, pela chegada dos retornados e pelos tempos febris que se seguiram, Júlia Grei vive e testemunha acontecimentos destacados da História de Portugal, indissociáveis da sua trajetória pessoal, uma e outra, História e trajetória, de certo modo inscritas no seu nome, conforme a advertência com que o romance se abre, assinada por Lídia Jorge: "Júlia porque é nome de paixão e Grei porque significa gente e povo" (5).

Júlia desenvolve-se na narrativa a ponto de conseguir recusar os muitos papéis que se lhe tentam impor, seja por Anabela Cravo, seja por homens como Artur Salema, Mão Dianjo e Saraiva — todos eles, em algum momento, pedindo-lhe mais do que ela pode e quer dar, inclusive abdicar de Jóia. Júlia é uma "personagem de mudança", uma "figura reivindicativa" (Jorge in Louro, 1984: 3), e o final do romance tem uma dimensão catártica, com a personagem-narradora a rebelar-se contra a hipocrisia e a manipulação de Anabela Cravo e Mão Dianjo e a narrar-se num "caderno amarelo" com "quase dez anos de vida escrita" (353, 327), uma reelaboração que, supõe-se, deve resultar muito parecida com a do livro que temos em mãos.


Referências:

FERREIRA, Ana Paula (org.) (2009). Para um leitor ignorado: ensaios sobre a ficção de Lídia Jorge. Lisboa: Texto Editores.

JORGE, Lídia ([1984] 1986). Notícia da cidade silvestre. 2. ed. Lisboa: Círculo de Leitores.

LOURO, Regina (1984). “Lídia Jorge: este terceiro livro é o primeiro”, JL – Jornal de Letras, Artes e Ideias, n. 128, 18 a 24 de dezembro, pp. 2-3.

REIS, Carlos (2025). Diálogos com Lídia Jorge. Lisboa: Publicações Dom Quixote.

 

[publicado a 27-03-2025]

Sara Grünhagen