Carminha Rosa é uma das personagens principais do romance O dia dos prodígios (1980), de Lídia Jorge, sendo designada também por Carma Rosa ou, juntamente com a filha Carminha, "as Carmas". A história de que Carminha Rosa é protagonista tem como cenário Vilamaninhos, uma vila ficcional do sul de Portugal, na região do Algarve. Referências a Lisboa e a Faro situam Vilamaninhos na periferia da sociedade moderna portuguesa; trata-se de uma comunidade alienada com a sua própria coerência interna e resistente ao progresso do século XX, quanto às crenças religiosas e às normas patriarcais, e vivendo à margem da política centralizada do país. O dia dos prodígios é o primeiro romance da escritora, abordando de uma forma crítica, às vezes pela paródia, a evolução do país até a revolução e o seu impacto, a partir da perspetiva da província portuguesa. A ação do romance decorre nos últimos anos da ditadura Salazar/Caetano e acaba pouco depois da Revolução de Abril de 1974, sendo construída sobre o quotidiano dos protagonistas da vila que sobrevivem do trabalho da terra, numa sociedade pouco atingida pela mecanização e pela industrialização, e de fraca produtividade.
Vários prodígios ocorrem ao longo da narrativa que, neste aspeto, se aproxima do romance do chamado realismo mágico (cf. Serra, 2008), onde o real e o maravilhoso se confundem: a fuga de uma mula desobediente, os poderes de vidente de Branca e o dragão do seu bordado (que lhe parece vivo), uma praga inexplicável de formigas e, como ocorrência mais importante, a aparição de uma cobra voadora cuja evocação repetida ao longo do relato confere uma dimensão cíclica à narrativa que acompanha o ciclo das estações. Nesta comunidade rural separada daquilo que acontece fora da vila, estes eventos servem de premonição à chegada dos soldados para anunciarem a Revolução e o início de uma sociedade mais democrática. Carminha Rosa destaca-se, juntamente com a filha, por viverem à margem da sociedade de Vilamaninhos e por não participarem dos eventos que tanto preocupam os habitantes do vilarejo. É alvo da crítica dos membros da povoação que a culpam pela relação ilícita com o padre Pardo que a engravidou e abandonou a aldeia antes do nascimento da filha. Simbolicamente, a igreja ficou fechada desde aquele momento, quase duas décadas antes. O facto de ambas, mãe e filha, terem o mesmo nome sublinha as semelhanças físicas, mas também sociais e morais entre ela. No fim do texto, a história repete-se, com Carminha a ter uma relação ilícita com Macário, “num tufo de aveia transparente que tinha ficado por ceifar” (Jorge, 1995: 194), não muito longe de onde Carminha Rosa se teria deitado com o padre, “sob as figueiras ramudas dos corgos” (17). Um episódio chave – aquele em que a filha sugere cortar o cabelo da mãe – também serve para simbolicamente aproximar as duas, com a promessa de que, ao cortar o cabelo de “anéis cinza jaspeada, nunca dispostos como durante a penteadura” (58), a mãe pareceria dez anos mais nova.
Toda a ação vivida por Carminha Rosa centra-se na sua preocupação em casar Carminha e na sua esperança de assim superar a situação de mãe e filha condenadas. É pela visão de Carminha Rosa que o leitor tem conhecimento dos desejos e das desilusões da filha que se apoia na opinião e no juízo da mãe. Na sua condição de protetora da filha, Carminha Rosa antecipa as reações da vizinhança quanto ao silêncio do namorado, chamado à guerra colonial. Carminha Rosa, como vidente, pressente que algo vai acontecer quando da morte do soldado. Numa cena central no romance, Carminha Rosa, sentada na latrina, soletra com grande dificuldade palavras num pequeno e insignificante quadrado de jornal, anunciando o falecimento do soldado. O impacto da tragédia parece mais forte na mãe do que na filha, que considera o acontecido como uma segunda desgraça, sendo a primeira a partida do padre, pai de Carminha. A narrativa volta várias vezes ao caso de Carminha Rosa com o padre, pelos pensamentos da filha ou pela transcrição de algum diálogo entre os habitantes do vilarejo. Carminha Rosa é alvo constante das críticas da vizinhança que a dizem capaz de se reproduzir sem homem e de abrir a casa a qualquer um; é ela que anuncia o fim do luto da filha e o começo do segundo noivado, com o Sargento Marinho.
A figuração da personagem Carminha Rosa passa maioritariamente pelo discurso direto das demais personagens do texto, mesmo quando a fala não é atribuída a ninguém explicitamente. Assim, o falatório acerca de Carminha Rosa e da filha, que se destacam por serem distintas do resto da comunidade, transmite informação que pode ou não ser verídica. Além desta estratégia narrativa, o narrador omnisciente muitas vezes revela o pensamento e os segredos mais íntimos da personagem, completando assim a sua configuração.
Carminha Rosa reviveu numa encenação teatral d’O dia dos prodígios, dirigida por Cucha Carvalheiro, no outono de 2010, no Teatro da Trindade. Coube à atriz e encenadora Maria Emília Correia, atriz regular na televisão portuguesa (em telenovelas, séries e telefilmes), o papel de Carminha Rosa.
Referências
JORGE, Lídia ([1980]1995). O dia dos prodígios. 7ª ed., Lisboa: Publicações Dom Quixote.
SERRA, Paulo (2008). O realismo mágico na literatura portuguesa: "O dia dos prodígios" de Lídia Jorge e "O meu mundo não é deste reino" de João de Melo. Lisboa: Colibri.
[publicado a 02-06-2020]