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Carminha

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Autor: Filomena Cautela como Carminha

Carminha (Lídia Jorge, O dia dos prodígios)

Carminha é uma das personagens principais do romance O dia dos prodígios (1980), de Lídia Jorge, considerada uma escritora da chamada, por Eduardo Lourenço, “geração literária da Revolução” (Lourenço, 1984: 7). A personagem é designada como Carminha, Carminha filha, Carminha Parda (pela feminização do apelido “Pardo”, por ser ela filha ilegítima do Padre Pardo), Carma Parda ou ainda como uma das “Carmas”, juntamente com a sua mãe, Carminha Rosa. Trata-se da personagem-chave do romance que representa uma arcaica vila ficcional do Alentejo, Vilamaninhos, decorrendo a história imediatamente antes e depois da Revolução dos Cravos; assim se retrata a vida provinciana do povo português afastado do meio político e mais moderno da capital do país.

A centralidade de Carminha é posta em evidência logo ao começo do romance sendo o seu nome a primeira palavra da narrativa. Nesta cena, carregada de simbolismo, a protagonista limpa cuidadosamente as janelas da casa que se situa distante do centro da vila, na parte mais alta da comunidade. Confiando na opinião da mãe, Carminha vive a condenação de não ser visível para pretendentes possíveis, estando numa vila “no alto de um empedrado rodeado de monturos e lagartixas” (Jorge, 1995: 13). A janela é a sua abertura para a vila e para o mundo e é por onde ela e a mãe podem esperar ver um forasteiro que venha tirar Carminha do “seu casulo de pedra, telha, tijolo” (14). A localização geográfica da casa onde a personagem vive com a mãe significa a sua marginalidade e alienação em relação à aldeia, ambas alvo da moralidade repressiva da povoação. Devido ao afastamento físico, social e moral do resto da comunidade, nem Carminha nem Carminha Rosa presenciaram dois grandes prodígios que aconteceram na aldeia: a luta contra uma cobra voadora e a chegada de soldados no fim da narrativa, provocando, pela sua ausência, a ira do povo expressa pela sua porta-voz e líder popular, Jesuína Palha.

Carminha representa, assim, a nova geração que talvez possa sair da feição opressiva do passado: no caso dela, a única opção seria casar com algum pretendente que viesse de fora da vila e que, apesar de saber da sua origem ilícita, quereria casar com ela. De uma forma cíclica, Carminha terá dois pretendentes que a ligam à guerra colonial e à violência do regime. O primeiro que aparece para lhe pedir namoro é um soldado de infantaria, Manuel Amado, cuja morte traduz a guerra colonial para a comunidade de Vilamaninhos. A espera semanal de Carminha pelo soldado torna-se simbólica de algo a vir, interpretada assim explicitamente pelo narrador (74-75). O segundo pretendente de Carminha é o sargento Marinho, já com uma certa experiência e idade, cuja violência transparece nas anedotas das suas aventuras em África, contadas ao povo fascinado pelas novidades vindas de fora. Ao ver o sargento rebaixar-se ao nível animal, quando castra publicamente um cão na praça pública, Carminha decide não se casar com ele. Opta por viver no seu presente, sem sonhos idílicos e acaba casando com um mancebo lunático da vila, o compositor-poeta Macário, que a idealiza ao longo da narrativa e faz dela um objeto de desejo semelhante à mulher adorada por um trovador medieval (cf. Ceroni, 2016).

Na primeira cena da narrativa, o narrador demora-se na descrição física de Carminha, tal como ela a si mesma pareceria no espelho de vidro da janela que cuidadosamente limpou: pele branca, sobrancelha rala, cabelo e olhos escuros (13). Ao longo do texto, a narrativa propõe elementos da personagem vistos por testemunhos que completam a sua construção. Mesmo se nem sempre está especificado a quem pertencem as falas, o texto constrói a personagem Carminha principalmente em discurso direto. Assim, pela fala de Macário o leitor conhece a sua puberdade precoce; pelos pensamentos da mãe sabe-se que a filha tem dezoito anos; pela transcrição de várias conversas temos conhecimento da meninice feliz de Carminha, do seu longínquo desejo de ver um forasteiro chegar à povoação, dos pormenores das cartas por ela escritas ao soldado, incluindo, por exemplo, uma em que se oferece para ser madrinha de guerra. Porém, é importante sublinhar que, tratando-se muitas vezes de informação que circula pela bisbilhotice da vizinhança, nem sempre essa informação pode considerar-se digna de confiança. Também acedemos, no romance, aos pensamentos de Carminha ou aos diálogos entre Carminha e a mãe sobre temas diversos como o namoro com o soldado, a sua morte, etc. Deste modo, ao longo do relato há um eclipse quase total do narrador omnisciente, para dar lugar às falas e aos pensamentos das personagens, sendo as descrições do texto centradas na personagem Carminha; configura-se, assim, uma narrativa polifónica em torno desta mítica comunidade algarvia.

Na encenação da peça homónima, levada ao palco do Teatro da Trindade com encenação de Cucha Carvalheiro, em 2010, Carminha (indicada no elenco por “Carma Parda”) foi interpretada por Filomena Cautela. A peça O dia dos prodígios ficou em cena de 22 de setembro até 14 de novembro, com mais uma apresentação especial para o encerramento das comemorações do 30º aniversário da carreira de Lídia Jorge, no Cineteatro Louletano, a 27 de março 2011.

 

Referências

CERONI, Sara (2016). “Medievalism and Portuguese Modernity in Lídia Jorge’s O dia dos prodígios”. Journal of European Studies. 46.3/4: 241-257.

JORGE, Lídia ([1980] 1995). O dia dos prodígios. 7ª edição. Lisboa: Publicações Dom Quixote.

LOURENÇO, Eduardo (1984). “Literatura e revolução.” Colóquio/Letras. 78: 7-16.

Kathryn Bishop-Sanchez