Terceiro morgado d’ A Casa Grande de Romarigães (1957), Luís da Cunha de Antas é filho de Domingos da Cunha e de D. Francisca de Antas. Educado por mestres de letras e artes, versado no jogo das armas, destemido e denodado patriota, integra a campanha pela Restauração da Independência de Portugal, na raia Norte, contra a Galiza.
Após vários anos de guerrilha, a milícia lusa toma definitivamente La Guardia, uma pacata localidade galega de pescadores. Tendo em conta a atitude sensata dos militares trasmontanos e minhotos, estes, de inimigos, passam a ser considerados como hóspedes pelos vencidos, “de modo que a devastação da Galiza, decretada por Schomberg e Marialva, reduziu-se a cama, mesa e roupa lavada, grato deo, verdadeiro trato de regalões” (Ribeiro, 2018: 40).
Será justamente no convento de La Guardia que Luís de Antas encontrará a noviça Joana de Azevedo – sua prima em terceiro grau, filha de Simão de Vilas Boas, morgado de Portela das Cabras, termo de Barcelos –, que se dispôs a professar a fim de não causar a seu meio-irmão qualquer estorvo na sucessão do vínculo. Luís de Antas admirou a atitude altruísta da jovem, mas compreendeu não apenas o carácter dúbio daquela vocação como o drama pessoal que tal escolha acarretava.
A iminência de uma guerra fazia perigar a simpatia mútua entre os primos, razão pela qual decidiram orquestrar a fuga imediata de Joana, certa noite de inverno, sob o olhar cúmplice e protetor de Nossa Senhora do Amparo, madrinha dos morgados da Casa Grande e invocada por Luís de Antas. De La Guardia passaram a Goyán, onde tomaram uma barca a fim de atravessarem o rio Minho, cujo caudal era agitado. A meio da passagem, a embarcação começa a derivar ao sabor da corrente. O perigo é colossal, mas Luís toma o comando do remo: “Dobrado para a proa, olhos fitos no fluxo da água, via-a murmurar, num murmúrio quase animal, de choro, de raiva, espadeirada, desviada, cortada do seu caminho à fina força. […] E a barca penetrou como uma flecha na terra impaludada de Portugal” (49), permitindo a chegada dos jovens, incólumes, a “um bosque de carvalhos e amieiros onde não chegara a babugem fluvial”. Então, “testemunhados pelas estrelas, que bem elas os miravam, com um ralo, ao cabo do almargeal, a entoar a flébil cantiguinha e que não interrompeu para não ouvir e ter de contar, mataram sua sede de amor” (ibidem).
A natureza adquire, como se verifica, grande relevância no universo aquiliniano, por se tratar de uma realidade que acompanha o caso das personagens – como se este fosse condicionado por uma natureza que é motor da intriga –, conferindo à narrativa características de um notório impressionismo visual.
Dali se dirigiram a Romarigães os amantes embevecidos, onde seriam acolhidos pelos pais do jovem e abençoados pelo padre Sebastião Mendrugo na capelinha consagrada a Nossa Senhora do Amparo – casamento inválido, contudo, uma vez que o pároco não estava habilitado para conceder este sacramento. Porém, os esforços desenvolvidos por Domingos da Cunha para reparar a devassa de seu filho Luís, permitem a nomeação deste como familiar do Santo Ofício, bem como de moço fidalgo da Casa Real e título de dom.
Uma vez na Casa Grande, Luís de Antas cumpre a promessa feita à Santa que os protegera durante a fuga da Galiza para o Minho, dando início à transformação da humilde capelinha construída por seu avô, Gonçalo da Cunha, em “residência real” (50), onde “Nossa Senhora do Amparo ocuparia, entre S. Pedro e S. Paulo, cada um em seu absidíolo, o lugar de honra, próprio da sua excelsitude”. Assim é que, em “toda a sua fachada […] [,] não havia uma pedra que não fosse obra antes de ourives que de escultor. A sua polimorfia era mais rica que a fachada de um livro setecentista. E com os quatro pináculos […] e a sineira no género de quiosque, lembrava de facto um pagode, de agulhas e coruchéus em simetria com as corutas dos pinheiros e dos olmos, erguidos na mata, mais longe, à luz efusiva dos céus” (62).
O temperamento audaz, dinâmico e assisado da personagem sofre, porém, uma mudança abrupta quando se apercebe de que Plácido, o primogénito de três filhos, melancólico e filósofo, não demonstra qualquer interesse pelos assuntos do morgadio. Luís culpa a mulher pela índole de Plácido. Sucedem-se os dissabores relacionados com a prosperidade da quinta: torna-se quezilento e ganha fama de “alma danada” (74).
Indiferente às vozes do mundo, volta a concentrar-se no governo da fazenda. Com afinco, recuperou as perdas sofridas e a riqueza foi reconquistada. Quando deu a alma ao criador, as finanças do morgadio eram estáveis. Sucedeu-lhe o filho primogénito.
Para a figuração da personagem foi essencialmente convocada a heterocaracterização baseada quer na focalização onmisciente do narrador heterodiegético, quer na focalização interna de narradores homodiegéticos como a de Florêncio da Cunha Beça, que intercede a favor de Luís, ao pedir ao pai de Joana a mão da jovem. Verifica-se ainda a autocaracterização, no momento em que se decide iniciar a construção da capela de Nossa Senhora do Amparo. Esta pluralidade de vozes narrativas instaura uma polifonia narrativa característica da ficção pós-modernista. Relevante é, de igual modo, a ilustração de João Abel Manta, na edição ilustrada do romance, a propósito da valentia demonstrada por Luís Antas no comando da barca, aquando da passagem do rio Minho.
RIBEIRO, A. (2018). A Casa Grande de Romarigães. Lisboa: Bertrand Editora.
[publicado a 18/07/2024]
Maria Eduarda Borges dos Santos