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Jorge Matos

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Autor: Ilustração de José Serrão e Carlos Marques

Jorge Matos (Mário de Carvalho, Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto)

No romance Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto (1995), construído de cenas comuns, corriqueiras, da vida de personagens que enfrentam as intempéries quotidianas, Jorge Matos, mais precisamente, “Jorge António Carreira Matos” (Carvalho, 2005: 49) surge como amigo, professor “do ensino secundário” (49) e, principalmente, como membro do Partido Comunista Português (PCP), um “homem de esquerda e mordaz” (49). A personagem, de “quarenta e nove anos, divorciado” (49), tem até identificação formal, “BI n.° 310477” (49), ou seja, é um ente ficcional com inscrição oficial, que, por sua vez, excede os níveis narrativos, especialmente ao transitar pelo papel de escritor, personagem e amigo do protagonista Joel Strosse.

Na construção da personagem, observa-se, por exemplo, sua necessidade de paz, aliada ao seu continuo tom rabugento. Ao escrever suas peças, o professor de francês faz “gestos retorcidos, boquinhas e olhinhos, esgares, dando vidas às personagens, como se fosse um médium espírita” (54), sendo descrito como uma “figura ridícula” (54), da qual não se devem “colher más impressões” (54). Atrelada a sua profícua produção literária (“as peças que se iam acumulando”; 53) estava sua inércia, “porque Jorge nunca tinha esboçado o menor gesto de as apresentar a um encenador ou um editor” (53), ele deixava-as mesmo sem leitor, sem crítica.

A personagem caracteriza-se pela manutenção de seu tom gélido, distanciado, quase sempre determinado a afastar-se dos inconvenientes em prol da manutenção de sua vida conforme seus ideais e escolhas. O incômodo incontornável para Jorge decorreu da presença de Eduarda Galvão que, ao buscar ajuda do antigo professor, acaba por envolvê-lo em um jogo de sedução e, em certo sentido, dividir com ele a construção de entrevistas fraudulentas. Os episódios de encontro com Eduarda são prenhes de dúvidas e, por fim, de enfado, com ele decidindo “cortar aquele fio de relação” (213). O término planejado por Jorge, ao enviar um bilhete e preocupar-se, acaba por tornar-se uma piada no trabalho de Eduarda, que afirma: “Esse velhadas pateta, a pensar que eu tinha algum interesse por ele. É preciso lata!” (213). Assim, percebe-se que se trata de uma personagem ingênua, ao acreditar na afeição da jovem e, também, determinada, já que opta por afastar-se de um possível envolvimento amoroso. O exagero presente no fim da “pseudo-relação” indica como o próprio destino pode ser irônico e traiçoeiro. Exagerada é, também, a atitude do “professor e dramaturgo céptico” (Silva, 2002), como revela Carvalho, face às escolhas de Eufémia, a “filha, dada em beata” (Carvalho, 2005: 49), que por acreditar em Deus e participar de uma missão em São Tomé era motivo de vergonha para o pai.

Jorge Matos é estranhamente encontrado por Joel Strosse, visto rapidamente por uma janela. Enquanto Joel parecia ainda mais angustiado pela vivência do seu tédio, vendo no velho amigo uma possível solução para seus dias desafortunados, Jorge, ao contrário, não era nem ao menos capaz de lembrar-se de onde o conhecia. Aos poucos, e depois de muita conversação, Jorge acaba por rememorar a origem da amizade, porém consciente da distância de tempo existente entre eles. A prisão de Jorge fizera-os perderem o contato, pois “passaram-se e revolveram-se os tempos” (58) desde a Faculdade. Apesar de desconfiado, Jorge “tenta fazer com que Joel seja aceito no partido” (Niederauer, 2008: 84); contudo, seus esforços parecem inúteis face à desconfiança que paira sobre o inesperado desejo de Joel e a negativa dos membros do Partido.

Nesse sentido, o processo de figuração de Jorge constitui-se da multiplicidade de traços, visto que o “militante efetivo” (84) demonstra a perda de suas ilusões políticas, ocasionando até mesmo um distanciamento da personagem nas reuniões do Partido, visto que, “nos últimos anos, Jorge pouco tinha feito pelo Partido” (Carvalho, 2005: 203). O pedido de entrada no PCP realizado pelo amigo acaba por ampliar a angústia já existente em Jorge, que questiona: “Se ele fosse contar as nossas reuniões ninguém queria saber. O Partido passa o tempo a querer relatar as reuniões, e quem é que liga?” (202). Na voz da personagem observa-se uma atitude crítica acerca do Partido e de seus membros. A ironia e o exagero são componentes dessa personagem que denuncia as agruras que assombram os ideais políticos e as ideologias.

 

 

Referências

CARVALHO, Mário de (2005). Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto. São Paulo: Companhia das Letras.

NIEDERAUER, Silvia (2008). “Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto ou o simulacro da narrativa na pós-modernidade”. Letras de Hoje. Porto Alegre. 43 (4): 83-88.

SILVA, Marisa Torres da (2002). “Sou pouco comunicativo, sou rápido a ouvir, não sou de conversas”. Entrevista com Mário de Carvalho. Público, 25 de setembro. Disponível em https://static.publico.pt/docs/cmf/autores/marioCarvalho/entrevista.htm (acesso a 24/06/2021).

 [publicado a 19-07-2021]

 

Luciana Silva