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Eduarda Galvão

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Autor: Ilustração de José Serrão e Carlos Marques

Eduarda Galvão (Mário de Carvalho, Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto)

A personagem Eduarda Galvão, de Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto (1995), não é apresentada, diversamente de outras personagens, logo de início por seus atributos físicos, e sim por uma ideia bastante singular, se não cômica, da constituição do saber a partir de critérios questionáveis. Ela insistentemente expõe seus conhecimentos sobre horóscopo e é, ironicamente, confrontada, além de exposta pela voz do narrador, que acaba por descrevê-la como uma personagem de “genialidade secundária” (Carvalho, 2005: 68), um tipo “de genialidade que ainda não está classificada” (68). Conforme destaca o mesmo, Eduarda é alguém capaz de recomendar a leitura de “Alberto Helder” (64), “nome que ouviu na televisão” (64) e interpretou erroneamente.

Jovem apresentada por Cláudio como sua namorada aos pais, Cremilde e Joel Strosse, Eduarda Galvão é elaborada a partir de seus vazios, sendo parte de seu processo de figuração a pobreza intelectual, ao não ser capaz de aplicar-se nos estudos e aprender sobre comunicação, e a imaturidade, ao agir inconsequentemente, sem refletir sobre a responsabilidade da profissão de jornalista. Seu percurso é comumente o mais fácil, envolve-se com colegas de profissão, extrai deles conhecimento e alcança vantagens, abandonando cada relação amorosa quando não precisa mais do parceiro. Ela conquista seu ofício de jornalista por persistência e oportunismo, já que o pouco que sabe vem de suas relações amorosas ou de “programas [de televisão] para intelectuais” (64). De acordo com Ana Paula Arnaut: Eduarda “é, sem duvida, o exemplo flagrante do prolongamento possível do tipo do jornalista, oportunista e sem escrúpulos, de nítido recorte eciano” (2012: 142).

A personagem tem o dom de versar sobre aquilo que conhece superficialmente, sendo capaz de inventar as entrevistas que realiza. Segundo o narrador, “Eduarda possuía o dom de absorver toda a informação, por íntima que fosse, guardá-la e evocá-la no propósito exacto” (Carvalho, 2005: 68), transitando em diferentes cargos, especialmente ao usar sua beleza e juventude como meios de crescimento profissional. Eduarda “tem um destino a cumprir” (65), principalmente ao ser representada a partir de “pinceladas rápidas, de zarcão” (65), sem que o narrador se atarde nos pormenores e prescindindo até mesmo das espessuras da composição. Uma caricatura de jornalista que, repetidamente, é ironizada pelo narrador, o qual não se abstém de criticá-la, inclusive, expondo o desconforto de Jorge após a pseudo-entrevista: “Nessa altura já quase lhe tinha aversão e estava ansioso por que ela desaparecesse com o seu bloco-notas, o seu à-vontade e as suas considerações peregrinas sobre ciências de bruxaria” (198).

O processo de figuração de Eduarda passa pela “oportunidade de brilhar a respeito de horóscopos” (40), o que indica certa debilidade da personagem, chegando ao auge no fracasso da entrevista com Augustina Bessa Luís. Percebe-se, assim, que uma conquista para qualquer jornalista apresenta-se como marco da incompetência de Eduarda. Além de não se preparar para o encontro com a escritora, a jornalista conta com a paciência desta em fornecer-lhe “uma folha com a sua bibliografia” (165) e, ainda, preferir “ser condescendente, maternal e explicativa” (164), claramente incomodada pela pergunta despropositada de Eduarda acerca do regresso de Augustina à escrita. O episódio da incompetência da entrevistadora encontra seu ápice na casa de Jorge Matos, que tenta “explicar a Eduarda” (195), sem êxito, que redigir uma entrevista com base nos relatos de outros jornalistas e sem nem ao menos ter retalhos da conversa realizada entre ela e Augustina seria “uma autêntica fraude” (195). Contudo, Eduarda mostra-se “pouco sensível ao vocábulo e ainda menos ao conceito” (195), o que demonstra uma provável imoralidade ou a completa incompetência profissional.

O excesso de inabilidade de Eduarda Galvão, bem como sua experiência afetiva alimentada por interesse profissional, são alicerces da constituição da personagem que, ao contrário do esperado, ganha um final aparentemente feliz, face ao porvir de quem começa a envelhecer. O exagero da estruturação da personagem revela a fragmentação dessa entidade ficcional elaborada para questionar o papel do jornalista naquela conjuntura, produzindo uma mulher que, ao decidir tornar-se jornalista, busca vantagens e não conhecimento. A relação tempestuosa com o professor, eivada de interesse, indica mais uma vez a persecução dessa mulher por crescimento profissional sem nenhum trabalho efetivo, haja vista sua incapacidade de falar a verdade sobre suas habilidades e também de redigir uma entrevista.

 

 

Referências

ARNAUT, Ana Paula (2012). “O processo criativo em Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto”, in Maria de Fátima Silva e Tereza Virgínia Ribeiro Barbosa (orgs.). Ensaios Sobre Mário de Carvalho. Coimbra: Imprensa da Universidade de Coimbra.

CARVALHO, Mário de (2005). Era bom que trocássemos umas ideias sobre o assunto. São Paulo: Companhia das Letras.

 

 

Luciana Silva