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Margarida Clark Dulmo

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Autor: Capa da edição Leya
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Autor: Anabela Morais como Margarida

Margarida Clark Dulmo (Vitorino Nemésio, Mau tempo no canal)

Personagem central do romance Mau tempo no canal (1944), Margarida Clark Dulmo assume aquela centralidade pelo lugar que ocupa num universo de conflitos familiares irresolvidos e de incompreensão perante os seus impulsos de emancipação social e amorosa. A ação do romance desenrola-se na segunda década do século XX, quando grassa nos Açores uma epidemia de peste, ao que se junta a notícia de tensões sociais e políticas, no tempo da primeira República.

A figuração narrativa da personagem diverge dos padrões romanescos oitocentistas que mais notoriamente se projetaram nalguma ficção portuguesa do século XX. Em Margarida Clark Dulmo não se prolonga o retrato da Joaninha das Viagens na minha terra de Garrett, o desenho mordaz dos tipos femininos queirosianos ou a imagem da donzela camiliana destroçada por amores fatais. Longe igualmente da mulher socialmente oprimida da ficção neorrealista coeva, Margarida Clark Dulmo agrega traços compositivos que se tornam mais densos, à medida que a ação do romance avança, sem descrições pormenorizadas daquelas que estabilizam uma personagem ao longo da história; em vez disso, Margarida vai agindo e reagindo, dialogando consigo mesma e com os outros, observando e sendo observada, conformando-se, por essa figuração acional, como uma personalidade dramática, no sentido mais genuíno da expressão. Por fim, tendo ficado por resolver uma incipiente e hesitante relação amorosa com João Garcia e também a sedução um tanto ambígua sobre ela exercida por um tio, Margarida abdica de muito do que almejara: “A morte do tio Roberto, em vez de a libertar de tudo tirando-lhe as últimas ilusões, não seria, pelo contrário, a sentença de morte do seu ser?, o seu dobrar à vontade alheia e às garras de um destino sem piedade?” (Nemésio, 1994: 320).

As interrogações retóricas assim formuladas têm respostas: cedência e renúncia, ambas traduzidas no casamento de conveniência com o filho do barão da Urzelina. O epílogo está, pois, traçado. O mundo narrativo de Margarida Clark Dulmo fecha-se sobre si mesmo e encerra-se na placidez do “amor de casados”, como ela diz. “Para quem se preza e já não tem ilusões”, declara Margarida no final do romance, esse amor de casados “é a grande âncora (…). Ser uma mulher casada é ser como um daqueles veleiros que se deixavam apodrecer meses e meses na Horta, amarrados a uma boia da Doca” (340).

No universo narrativo de Mau tempo no canal, Margarida Clark Dulmo destaca-se como uma das personagens mais marcantes de toda a literatura portuguesa. A sua singular configuração começa quando, logo no início, o relato dá conta do namoro semiclandestino da filha dos Clark Dulmo com João Garcia, ao que se segue a violenta reação de Diogo Dulmo, que agride a filha com uma verdasca. Na sequência desse episódio, traçando uma linha de desenvolvimento que determina a centralidade da personagem, Margarida vive essa centralidade em função de uma rebeldia combinada com sensualidade: “Margarida ouviu tudo do peitoril da janela, com as feições banhadas naquela sensualidade fina que repetia um pouco a da mãe e que uns olhos seguros vigiavam, dando-lhe calma e um espécie de compensação grave” (47); é o protagonismo de Margarida que explica os termos em que a personagem se estabelece como fulcro da representação narrativa e eixo de referência de um mundo dominado por preconceitos familiares, numa atmosfera tipicamente açoriana: “Pela tribuna que dava para a ermida viu o painel da Senhora Mãe dos Homens, com a fronte no sentido da escada de mão encostada na véspera pelos eletricistas, como se a Virgem esperasse a subida de alguém. O Funchal já ia fora da Doca, seguido de uma fita esbranquiçada que partia o Canal ao meio. Estava um dia cinzento de pasmaceira” (47).

Seguramente, não era fácil ser-se mulher, naquele mundo insular, agreste, autoritário e infestado não apenas pela peste, mas também pelo “contágio” de dissensões familiares, para as quais não havia antídoto. Nem mesmo o da rebeldia de uma jovem que acompanhava com o olhar os navios que partiam e que exibia um anel decorado por uma serpente cega, trazendo em si os sentidos da energia feminina, da origem vital, do duplo sentido da alma e da líbido (cf. Chevalier e Gheerbrant, 1995: 867-868). As razões de família que explicam o isolamento de Margarida, na vivência de uma relação amorosa inviável, não anulam a sensualidade já referida, modulada por um comportamento amadurecido. É o olhar da personagem que alcança o cenário do canal; no navio que se desloca, parte João Garcia, acentuando-se, deste modo, uma fratura que confirma a impossível união entre famílias desavindas. A partir daqui, acedemos a linhas de leitura que propõem trajetos autónomos, mas sempre religados pela personalidade feminina que escuta, olha e vive o espaço envolvente, dominado pelo canal.

No que fica dito está implícito aquilo que a exegese nemesiana tem sublinhado: Mau tempo no canal é muito mais do que um romance sobre o espaço e sobre os costumes dos Açores e mais também do que a história de Margarida Clark Dulmo; trata-se de uma obra de alcance universal, indo além do horizonte restrito do regional. O mau tempo que se levanta no canal é também (ou sobretudo) o das tensões e conflitos a que ele serve, ao mesmo tempo, de pano de fundo e de incentivo para disputa de poderes económicos, sociais e simbólicos entre duas famílias desavindas e também para decisões individuais como as que Margarida tem de tomar. Confirma-se isso mesmo, quando percebemos que, em Mau tempo no canal, os trancadores da baleia, os remadores e os seus aparelhos e embarcações não são objetos decorativos, como bem mostra o magistral episódio da incursão dos baleeiros no mar do canal: “Sem pinga de sangue, contendo o fôlego” (260), Margarida participa na aproximação a Leviatã, a baleia a capturar.

Superado o descaso crítico que, quando da sua publicação, o romance conheceu (salvo exceções), Mau tempo no canal e a protagonista Margarida Clark Dulmo foram reconhecidos como um romance e uma personagem de fecunda ambivalência. Ou seja: a dimensão de açorianidade que atravessa o relato não põe em causa, antes potencia, uma incontestável universalidade, assim se confirmando o que o próprio Nemésio reivindicara. Sendo uma obra “onde tudo se entrelaça, onde tudo se equilibra, onde tudo se estrutura em ondas sucessivas”, Mau tempo no canal incorpora “mitos e sonhos [que] se enraízam na realidade física insular” (Garcia, 1988: 93 e 133); consensual, do ponto de vista crítico, na análise deste romance polifónico e dialógico (cf. Fagundes, 2003: 75-110), “feito de tempo histórico, de tempo interior, de passado (pessoal e coletivo) e de futuro, de incerteza e disponibilidade” (Pires, 1998: 21), é a complexidade da protagonista Margarida Clark Dulmo. “Espantoso retrato psicológico duma mulher”, esta personagem “aparentemente tão real, é um ser insatisfeito e fugidio” (Garcia, 1988: 95 e 96); trata-se, por fim, da “mais elegante representação de uma mulher, em termos humanos e simbólicos, em toda a nossa literatura do século XX”, bem como de “um interessante assunto para os estudos feministas” (Seixo, 2003: 131).

Em 1989, a RTP Açores produziu a série Mau tempo no canal, em cinco episódios, com realização de Zeca Medeiros e com Anabela Morais no papel de Margarida. Foi produzido também um documentário (realização: João Osório) e, na rádio, uma das “viagens com livros”, por João Paulo Guerra ocupou-se de Mau tempo no canal.

 

Referências

CHEVALIER, Jean e Alain GHEERBRANT (1995). Dictionnaire des symboles. Édition revue et augmentée. Paris: Robert Laffont/Jupiter. 

FAGUNDES, Francisco Cota (2003). “A escrita como índice de universalidade em Mau tempo no canal”. Portuguese Cultural and Literary Studies. 11: 75-110.

GARCIA, José Martins (1988). Vitorino Nemésio – à luz do verbo. Lisboa: Vega.

NEMÉSIO, Vitorino (1994). Mau tempo no canal. 7.ª ed., Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

PIRES, António Machado (1998). Vitorino Nemésio: Rouxinol e Mocho. Praia da Vitória: Câmara Municipal da Praia da Vitória.

SEIXO, Maria Alzira (2003). “Mau tempo no canal: an iridescent metaphor”. Portuguese Cultural and Literary Studies. 11: 129-169.

 [publicado a 15-02-2021]

Carlos Reis