Na novela inserida por Garrett em Viagens na minha Terra (obra publicada em volume em 1846, depois de aparecer em folhetins na Revista Universal Lisbonense), Joaninha é a principal das personagens que contracenam com Carlos, o protagonista, numa relação que ilumina nuclearmente o significado da ação, colocada no tempo das lutas liberais. A envolver a narrativa metadiegética, está o discurso que o Narrador do livro, identificado com o Autor/Garrett, dirige na primeira pessoa, em vivo estilo "conversacional", aos leitores (e leitoras), registando, como se o fizesse sobre a hora, o que vê e pensa ao ir de Lisboa a Santarém, em 1843, para visitar um amigo (Passos Manuel). Intrigado pela casa antiga que descobre no fresco Vale das imediações da cidade, ele ouve a história dos que a habitaram cerca de dez anos antes, reproduzindo-a, intermitentemente, entre os capítulos 10 e 49 (o último) da obra. Tanto o que o Narrador vai dizendo nas suas digressões, como essa história que conta, ganham, pois, valência de “realidade”, imbricando-se tematicamente. A “novela da casa do Vale” funciona, de facto, como ilustração de vetores fundamentais das considerações do Narrador: a marcha fatal da história num suceder de atropelos entre espiritualismo e materialismo; o desastre português saído das lutas entre absolutistas e liberais, aqueles representados no extinto "frade”, estes nos que o haviam combatido (nós…) e, depois, no “barão” que a todos tinha “escouceado”, “usurariamente revolucionário, e revolucionariamente usurário” (Garrett, 2010: 181).
A confrontação entre Carlos e Joaninha é fundamental para a construção do sentido global da novela ao efabular, na inviabilidade do amor entre ambos, o conflito de cariz “rousseauniano”, subjacente a quantos a narrativa instaura, entre a inocência primitiva do homem e a sua degradação no contacto com a sociedade: Carlos, partindo da juventude rural feliz para a imersão no labirinto do mundo, com queda na “flutuação” interior, “inquieta e doentia” (282), na volubilidade amorosa e na metamorfose em barão liberal, personaliza a expulsão adâmica do Paraíso; a fresca Joaninha, de candura subsumida no terno diminutivo que a designa, é a representação metaforizada do estado de natureza, votado a perecer. As duas personagens, que forçosamente se desencontram, estão unidas na sua raiz por laços de sangue – são primos que se adoram – e pelo bom húmus que as alimentou, a casa familiar e o “rústico e selvagem” (441) Vale de Santarém que a envolve. Carlos, uns quinze anos mais velho, trouxe ao colo, no seu passado alegre, a graciosa Joaninha-criança, tornada no presente diegético a gentil menina-mulher, de dezasseis anos, que acompanha a avó cega na casa do Vale.
Nas cenas iniciais, estando Carlos no cerco do Porto ao serviço de D. Pedro, avó e neta recebem o seu habitual visitante das sextas-feiras, o soturno e austero Frei Dinis, guardião do convento de S. Francisco de Santarém: ele traz-lhes, em tom ominoso, notícias da guerra civil e do ausente, que amaldiçoa por tão desvairado julgar o naipe político em que milita, só apostado em enriquecer (cf. 193). Joaninha atua e fala muito pouco: apenas a vemos ajudando a avó com solicitude e amparando-a quando a ascética rigidez do frade a magoa ao prescrever-lhe com dureza a aceitação do sofrimento e a condenação de Carlos. É numa expressão mista “de fé e de incredulidade, de simpatia e de aversão” (189) que a jovem ouve o franciscano, reprovando o “Deus de terrores, de vinganças, de castigos, e sem nenhuma misericórdia” (285) que ele invoca.
Larga presença física – e moral – ganha, porém, Joaninha através do Narrador, por feições, gestualidade, inflexões de voz. Sem ser “bela”, possui um vulto “airoso” que é “o ideal da espiritualidade” (172); tem, por dom natural, uma “flexibilidade graciosa” e “ondulante”, que lembra a “hástea jovem” de uma árvore, “direita mas dobradiça, forte da vida de toda a seiva com que nasceu” (173). O “rosto sereno”, a pele branca e rosada, as sobrancelhas desenhadas numa “longa curva de extrema pureza” (175), a boca “pequena e delgada”, na expressão habitual da “gravidade” sem “a menor aspereza nem doutorice”, o cabelo castanho penteado com “singela elegância” (174), o “simples vestido azul escuro”, o “cinto e avental preto”, a voz “doce, pura, mas vibrante” (169) – tudo nela concorre para uma harmonia só perturbada pelos olhos, em “admirável discordância” por serem pasmosamente verdes, “verdes-verdes, puros e brilhantes como esmeraldas do mais subido quilate” (175).
Joaninha afasta-se, pois, dos estereótipos românticos da mulher-anjo ou da mulher-sílfide, de espiritualidade traduzida em beleza vaporosa: ela tem seiva, em conjugação metonímica com o espaço que a enquadra, o Vale de Santarém, que nunca abandonou. O Narrador evoca-o como um desses “lugares privilegiados pela natureza”, onde “tudo está numa harmonia suavíssima e perfeita”, de tal modo que parece que só “a paz, a saúde, o sossego do espírito e o repouso do coração” ali vivem um “reinado de amor e de benevolência” (157). Dentro deste espaço edénico, a casa que avó e neta habitam encontra-se num outro mais restrito – um maciço de verdura onde se entrelaçam faias, freixos, álamos, com grinaldas de madressilva e mosqueta, e o chão está alcatifado por plantas rústicas, a congossa, os fetos, a malva-rosa do valado; no recinto, cantam os rouxinóis…
Com o reencontro dos primos, alguns meses mais tarde, nesse Vale chocantemente ocupado agora pelas tropas litigantes, vem a segunda etapa da configuração ficcional de Joaninha, que acrescenta dados fundamentais: a energia natural que a anima traduz-se no amor que manifesta por Carlos, um amor total e sem mácula, como o Eros inocente que reinava no Paraíso antes do pecado. Se “ruína, desolação e morte” (235) se tinham espalhado em torno da casa do Vale, transformada em quartel e reduto militar onde ela pensa os feridos de ambos os campos, já a primavera está a renovar a natureza e a guerra a acalmar, quando Carlos (que enfim conhecemos!) – galhardo oficial – depara, num abrigo de verdura, com uma jovem adormecida sobre um banco rústico “tapeçado de gramas e de macela brava”, “meio recostada, meio deitada”, numa posição que desenhava “mole e voluptuosamente” as “formas graciosas de seu corpo” (243); profundamente surpreso, reconhece Joaninha… Em torno dela cantava um rouxinol, que cessara os seus trilos com o aproximar dos soldados que acompanhavam o chefe, mas os retoma quando ele, postadas as sentinelas a distância, regressa pé ante pé para junto da prima: a avezinha, como sentindo a pertença original de Carlos ao Vale, redobra os seus gorjeios… É, pois, de modo poeticamente metaforizado através de elementos naturais que a “Menina dos Rouxinóis”, como chamam os soldados a Joaninha num respeito sorridente, continua a ser apresentada, mas ganhando languidez feminina.
Carlos perturba-se com o vulto mulheril adquirido pela criança que sempre trouxera no coração. Pousa os lábios na mão da jovem, que acorda, alvoroçada, do seu habitual sonho com o primo; e unem-se num “longo, interminável beijo… longo, longo e interminável como um primeiro beijo de amantes…” (250). Deslaçam-se enfim – comenta o Narrador, solidário – porque “os reflexos do céu na terra são limitados e imperfeitos”. Num discurso entrecortado pelo pasmo e pela emoção, Joaninha fala ao primo numa visita à avó e na urgência de saírem daquele reduto onde estavam sós, propiciando comentários malévolos. Leva-o pela mão para o vale aberto; Carlos seguia-a “como (…) obedecendo ao poder de um magnetismo superior e irresistível” (253). “Daquele sonho encantado que os transportara ao Éden querido de sua infância” despertam-nos as vedetas de ambos os campos: e eles “viram-se na terra erma e bruta, viram a espada flamejante da guerra civil (…), que os expulsava para sempre do paraíso de delícias em que tinham nascido…” (254). Separam-se, marcando encontro para o dia seguinte, a fim de prepararem a visita à avó.
O mal que exclui do “paraíso de delícias” tem mais facetas, porém, do que a violência da guerra: é o que nos mostra, com admirável subtileza, esse encontro dos primos. Singulares sequências, no contexto da narrativa oitocentista, o precedem: o Narrador, colado a Carlos, dá-nos acesso, como por “fotografia mental” (276), à “excitação” que lhe “desafinara os nervos” (262) após ter deixado Joaninha. Assistimos às perplexidades em que o oficial se debate: que sentimento lhe inspira aquela “airosa donzela” que o beijara, aquela “mulher feita e perfeita, e que nada perdera, contudo, (…) do suave e delicioso perfume da inocência infantil em que a deixara” (264)? Amava – e “era obrigado a amar ainda” (265)! – essoutra mulher, bela e rica, que tudo lhe sacrificara em Inglaterra, quando exilado? Ir ou faltar ao prazo marcado pela prima? Carlos decide comparecer. Acompanha-o sempre o Narrador, a pedir compreensão para os dilemas do seu “herói”, uma daquelas “organizações privilegiadas de que se fazem os poetas e os artistas” (273). Para o provar, transcreve um fragmento das suas “aspirações poéticas” (273) dedicado aos olhos verdes da prima, poema em prosa de inovadora desarticulação, cheio de interrogações e frases suspensas, que nos desvela a função simbólica desse traço fisionómico: “no verde está o todo, a unidade da formosura criada” (275). Tais olhos contribuem, pois, para que Joaninha represente um ícone da natureza.
O encontro dos primos passa da efusão comovida a um adeus murcho. Insistindo na visita à casa do Vale, a jovem estranha as reticências do primo, aclaradas pelo Narrador: “Era a dúvida, era a fraqueza (…), a necessária falsidade do homem social” (292). A justificar-se, o oficial invoca a eventual proibição dos chefes, com uma insegurança que trai estar a mentir. Regista o Narrador: “Joaninha olhou para ele fixa… Carlos corou de novo. Ela fez-se pálida… Daí corou também” (292). No diálogo – tão simples e tão intenso! – que a seguir trocam, o oficial continua a tergiversar. À pergunta da prima sobre se permanecia o seu Carlos e lhe queria como dantes, responde com ilusória certeza: “Sou… Oh! sou. E amo-te”. “Como dantes?” – insiste Joaninha; ao que ele responde: “Mais”. A jovem, sem hesitação nem pejo, declara-lhe então: “Pois olha, Carlos: eu nunca amei, nunca hei de amar a nenhum homem senão a ti” (293). Comentando a cena, o Narrador mostra o seu espanto com a naturalidade deste “amo-te”, pronunciado por Joaninha “como se aquele tivesse sido sempre o pensamento único (…) de sua vida” (293). Carlos, esse, aterra-se: “No primeiro instante ia lançar-se nos braços da inocente que lhos abria num santo êxtase do mais apaixonado amor; no segundo, tremeu e teve horror da sua felicidade” (294). Invoca pretextos para recuar, olhando para a prima “com uma indizível expressão de afeto e de tristeza” (294). A alegria que iluminava os olhos de Joaninha amortece, passam do verde a um “polido mate e silicioso” (294): tinha adivinhado que Carlos trazia no coração outra mulher. “Oh! se tu soubesses…” (295) – diz-lhe o primo, abrindo via para futuras explicações. E despedem-se, com um “ósculo tímido e recatado” (296), de lábios frios e mãos trémulas.
Não voltam a encontrar-se a sós. Carlos, chamado a combater, deseja a morte como única saída das suas perplexidades e, ferido, é tratado por Frei Dinis e Georgina, a bela inglesa, vinda a Portugal, que o amava e ele “devia” amar. Na cela do convento do franciscano onde o oficial recupera, acompanhado por essa mulher superior que, tendo penetrado nos seus dilemas, quer casá-lo com a prima, tem lugar a patética anagnórise que descobre ser o frade o pai do jovem. Joaninha assiste com a avó às revelações, apiedada do sofrimento de Carlos: cada vez o ama mais, diz a Georgina que, abnegada, simula ter deixado de querer ao oficial. Carlos é que não supera tanta convulsão: abandona todos, juntando-se ao exército liberal. Nem ele, nem Joaninha, voltam a atuar no presente diegético.
É por Frei Dinis – que o Narrador encontra, mirrado, na casa do Vale, ao regressar a Lisboa – que se conhece o trágico destino dos que a habitaram: Carlos engordou, enriqueceu, tornou-se barão, será deputado um dia; Joaninha enlouqueceu e morreu (cf. 458). O frade dá a ler ao Narrador uma longa carta que ela recebera do primo, escrita (simbolicamente!) de Évora-Monte, em maio de 1834, local e data do triunfo dos barões liberais: com “espanto e horror” de si mesmo (442), Carlos explica à “menina dos Rouxinóis” como caíra em fragmentação interior e “morte” moral no ceticismo, tornando-se incapaz de amar a inocente que poderia revocá-lo do abismo.
Como vemos, Joaninha, sem deixar de ter alguma consistência física e psicológica, “vale” sobretudo como poética representação da inteireza natural, irrecuperável para os que perderam, como Carlos, a unidade e a transparência nativas.
Referência
GARRETT, Almeida (2010). Viagens na minha terra. Edição de Ofélia Paiva Monteiro. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.
[publicado a 21-11-2019]