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João Garcia

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Autor: Capa da edição Leya
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Autor: João Cabral no papel de João Garcia

João Garcia (Vitorino Nemésio, Mau tempo no canal)

Personagem do romance Mau tempo no canal (1944), cuja funcionalidade narrativa pode ser considerada subsidiária da que Margarida Clark Dulmo interpreta na história. Por essa razão, João Garcia é objeto de uma figuração, por assim dizer, dependente. Ou seja: a sua conformação é um efeito da presença, do caráter afirmativo e da visão daquela personagem central, no cenário social e mental da ilha do Faial, na segunda década do século XX.

A breve descrição que se encontra num passo do capítulo II traduz exatamente aquela dependência da personagem, vista por Margarida e pelos seus juízos de valor: “João Garcia pareceu-lhe simpático, de modos finos, não seria positivamente o seu tipo de beleza em rapazes — magro de mais, com uma timidez desconcertante, porque era só não sei que falta de jeito naquele todo: a mão esquerda por baixo do joelho da perna direita cruzada, não muito bem vestido, mas com uma gravata de bom gosto e o queixo enclavinhado quando contava partidas de Coimbra e coisas antigas da ilha, das descobertas e dos conventos. Os olhos animavam-se-lhe muito e tinha umas mãos expressivas: se falava de uma coisa redonda unia-as como quem abre um fruto. Um nariz grosso, levemente suado; mas a testa era bonita, o cabelo era forte…” (Nemésio, 1994: 48).

Para além disto, João Garcia é uma extensão dos conflitos entre duas famílias, a dele mesmo e a dos Clark Dulmo, o que interdita a relação amorosa entre os dois jovens. Cabe-lhe a amarga condição de herdeiro e vítima dos episódios familiares e dos preconceitos que determinam aqueles conflitos, ao que acresce a irresolvida e timorata insegurança que o distancia de Margarida. É o próprio João Garcia quem dá testemunho, em reflexão interior, daquilo que o separa da jovem, agravado por uma timidez insuperável: “Ainda hoje não podia explicar aquela timidez de menino. Levava-a dentro de si como uma hóstia ou uma relíquia; parecia que não tinha boca, passos, a decisão de toda a gente!” (104). As divergências entre os dois clãs fazem o resto, “porque [João Garcia] se lembrava da situação do pai: despedido da casa Clark, difamado por Diogo Dulmo, e toda a família levada aos soalheiros da Horta: a mãe expulsa da casa como adúltera, o tio Ângelo um maricas, o tio Jacinto boticário de aldeia e a avó Maria Florinda ‘uma velha de xaile e lenço, amiga do escrivão Severianinho’. Então nascia-se chumbado a coisas que acontecem a todos?” (104)

O namoro semiclandestino e também efémero de João Garcia (“recalcava o seu amor como coisa para ter desfecho noutra vida”; 104) enfrenta a violenta repressão relatada logo no início do romance, quando Diogo Dulmo agride a filha com uma verdasca. É a mãe da jovem quem procura explicar “as velhas razões dos Clarks contra a família Garcia” (46). Para mais, a linguagem de Margarida – linguagem da maneira de ser e de estar, entenda-se – não é facilmente compreendida por quem deveria sê-lo: João Garcia, que “tomara ao pé da letra aquela primeira carta e as evasivas dela, a conversa evitada no dia do passeio a cavalo… as ausências do muro, à tarde…”, não entendia a “linguagem viva” da jovem, “os seus passos furtivos pelos atalhos da quinta” (144).

Faz parte desta síndrome da incompreensão e do temor que afeta João Garcia o anel-serpente que acompanha Margarida Clark Dulmo ao longo da ação, trazendo em si os sentidos da energia feminina, da origem vital, do duplo símbolo da alma e da líbido (cf. Chevalier e Gheerbrant, 1995: 867-868). Tudo aquilo, em suma, que João Garcia parece não ter energia para enfrentar. Mesmo mutilado pela perda de uma pedra preciosa, “aquele bicho perverso e encantado” (203) atemorizara João Garcia, afastando-o para sempre de Margarida.

Por fim, João Garcia, enquanto personagem, fica aquém da complexidade e da densidade psicológica de Margarida. A par dela, Garcia não deixa, entretanto, de representar aspetos significativos da mentalidade, dos modos de vida e também do ambiente social e político do princípio do século XX, tanto na ilha como fora dela. Para isso contribui a sua condição masculina, num mundo em que a mulher se debatia com limitações e com censuras que nem mesmo Margarida consegue anular; mas a João Garcia é consentido sair da cena insular só por si, antes de mais para estudar em Coimbra. Pelo seu lado, Margarida acaba por ceder a um casamento entendido como a “grande âncora” (340) em que a mulher busca segurança.

Em 1989, a RTP Açores produziu a série Mau tempo no canal, em cinco episódios, com realização de Zeca Medeiros e com Anabela Morais no papel de Margarida. Foi produzido também um documentário (realização: João Osório) e, na rádio, uma das “viagens com livros”, por João Paulo Guerra ocupou-se de Mau tempo no canal.

 

Referências

CHEVALIER, Jean e Alain GHEERBRANT (1995). Dictionnaire des symboles. Édition revue et augmentée. Paris: Robert Laffont/Jupiter.

NEMÉSIO, Vitorino (1994). Mau tempo no canal. 7.ª ed., Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda.

[publicado a 17-02-2021]

Carlos Reis