Personagem d'O primo Basílio (1878) de Eça de Queirós, com forte intervenção na ação do romance. Por se tratar de uma figura da classe popular, o respetivo processo de figuração exigiu do autor um grande investimento. Com efeito, Juliana não pertence às classes mais representadas na ficção queirosiana – média ou alta burguesia e aristocracia –, mas faz parte do enorme grupo de serviçais que, quase todos anónimos, nela têm a expressão da sua condição social.
Juliana desempenha um papel fundamental n’O primo Basílio, publicado pela primeira vez em 1878: trabalhando em casa de Jorge e de Luísa e pressentindo a traição conjugal a que esta se entrega na ausência do marido, vislumbra aí a oportunidade da sua vida. Para isso espera até se apoderar de uma carta que Luísa escrevia ao amante. Acrescentando a esta outras cartas que rouba, e aconselhada por uma velha inculcadeira, utiliza-as para obter o dinheiro necessário à fuga da sua precária e servil condição. Mas Basílio, o primo e amante da patroa, suficientemente rico para prover a quantia desejada, alheia-se da “trivialidade reles” das cartas roubadas e parte para Paris. As pressões recaem, então, sobre Luísa, através de uma cruel chantagem em que o dinheiro é tão importante como a vingança: “Dos vinte anos a dormir em cacifros, a levantar-se de madrugada, a comer os restos, a vestir trapos velhos, a sofrer os repelões das crianças e as más palavras das senhoras, a fazer despejos, a ir para o hospital quando vinha a doença, a esfalfar-se quando voltava a saúde” (Queirós, s. d.: 76). Por isso, enquanto espera que Luísa lhe pague o preço do silêncio, obriga-a a pagar diariamente “aquele gozo de a ter «na mão», a Luisinha, a senhora, a patroa, a «piorrinha»!” (249): começa por obter de Luísa os sinais exteriores da condição que tanto inveja – boas roupas e confortáveis instalações –, acabando por lhe retirar a dignidade e a própria autoridade de dona da casa. Estes excessos, que obedecem à pura satisfação do ódio e se sucedem in crescendo, ditam a sua sentença: perante as ameaças de Sebastião, um velho amigo de Jorge a quem Luísa recorre no limite da humilhação, Juliana morre subitamente de um aneurisma. Não concretiza as suas ambições – “ter um negociozito, uma tabacaria, uma loja de capelista ou de quinquilharias, dispor, governar, ser patroa” (76) –, mas leva a cabo a “desforra” que, por algum tempo, tanto prazer lhe deu.
Numa crítica publicada n’O Cruzeiro em 1878, Machado de Assis considera “Juliana, o carácter mais completo e verdadeiro do livro” (apud Rosa, 1979: 159-160). Defende a superioridade desta personagem em relação à de Luísa que, na sua perspetiva, não passa de um “títere” sem sentimentos ou conteúdo moral, e serve-se dela para apontar as falhas na conceção do romance: “Suponhamos que tais cartas não eram descobertas, ou que Juliana não tinha a malícia de as procurar, ou enfim que não havia semelhante fâmula em casa, nem outra da mesma índole. Estava acabado o romance, porque o primo enfastiado seguiria para a França, e Jorge regressaria do Alentejo; os dois esposos voltavam à vida anterior” (160). Sem Juliana, não seria demonstrada a única tese que, ironicamente, Machado de Assis encontra no romance: “a boa escolha dos fâmulos é uma condição de paz no adultério” (161). É verdade que, sem Juliana, o romance seria diferente e muitas outras hipóteses poderiam ser colocadas quanto ao rumo e desfecho da intriga do adultério. Mas é igualmente verdade que Juliana é indispensável a uma ação capaz de gerar sentidos que largamente ultrapassam a linear representação das circunstâncias conducentes ao adultério feminino. Com efeito, mais do que precipitar o desfecho de uma relação adúltera que a saciedade condenara já ao fracasso, Juliana provoca a completa revelação de Basílio aos olhos de Luísa, levando-a a tomar consciência da natureza ilusória da paixão e, sobretudo, da fragilidade da sua condição de mulher. Juliana não se limita, pois, a ser o motor da intriga da chantagem que se sucede à do adultério, como se de duas intrigas autónomas se tratasse. Ela é uma peça fundamental na formulação dos sentidos que percorrem o romance, justificando as palavras de Sebastião – “Não há más mulheres, minha rica senhora, há maus homens, é o que há!” (Queirós, s. d.: 378) –, bem como as de Leopoldina: “Os homens são bem mais felizes que nós!” (167).
A personagem começa a ganhar vida no universo ficcional a que pertence através do retrato que o narrador dela nos traça, fazendo-a vir à sala onde decorre a cena inaugural da narrativa: “Juliana entrou, arranjando nervosamente o colar e o broche. Devia ter quarenta anos, era muitíssimo magra. As feições, miúdas, espremidas, tinham a amarelidão de tons baços das doenças de coração. Os olhos grandes, encovados, rolavam numa inquietação, numa curiosidade, raiados de sangue, entre pálpebras sempre debruadas de vermelho. Usava uma cuia de retrós imitando tranças, que lhe fazia a cabeça enorme. Tinha um tique nas asas do nariz. E o vestido chato sobre o peito, curto da roda, tufado pela goma das saias – mostrava um pé pequeno, bonito, muito apertado em botinas de duraque com ponteiras de verniz” (16). Este retrato é relevante por várias razões: anuncia a importância da personagem na acção que então começa; a fisionomia que se desenha constitui um contraste gritante com a de Luísa, estabelecendo-se entre as duas personagens femininas uma relação de oposição que ultrapassa a aparência física; a cor da pele associada à doença de coração, muitas vezes referida posteriormente, garante a verosimilhança do destino final da personagem; os tiques nervosos, a inquietação do olhar, tal como a curiosidade que nele habita, são indícios de um temperamento a que fica a dever-se, em grande parte, o rumo da intriga; finalmente, a magreza sem formas, o tamanho da cabeça em contraste com a mesquinhez das feições constroem uma fealdade incapaz de suscitar a menor simpatia. Embora a neutralidade do narrador seja traída pela seleção dos elementos descritos e pela natureza valorativa dos adjectivos que usa, cabe às personagens que contracenam com Juliana emitir juízos de valor sobre a sua aparência e o seu carácter, corroborando o que é captado pelo olhar de quem narra e descreve. Assim sucede com Luísa desde o início, ao manifestar a Jorge a sua antipatia pela criada a quem não suporta a “fealdade”, os “trejeitos”, a “maneira aflautada” de falar; também “D. Felicidade não podia sofrer a Juliana: achava-lhe cara de Judas, tinha ar de ser capaz de tudo” (298); Julião afirma a impossibilidade de Juliana vir a ser algum dia o alvo de tentações masculinas, explicitando mais tarde a razão do que afirma, no único comentário que lhe suscita a figura morta da criada: “– Feia besta!” (399); da mesma forma reage a mulher que amortalha o cadáver, dizendo-se “enojada com a defunta! Nunca vira bicho mais feio. Um corpo de sardinha seca!” (407); e até a bondosa criada de Sebastião dela dirá que “boa mulher, não era ela!” (408). A personagem de Juliana vai-se assim construindo sobre as descrições – ricas em apontamentos sobre os gestos, o olhar e a voz – a que é sujeita pelo narrador, sobre os sentimentos que desperta nos outros, sobre a interação que com eles mantém – com particular relevo para os momentos de confronto, directo ou indirecto, com Luísa – e ainda sobre as próprias emoções, sentimentos e a memória ressentida de um passado a que a omnisciência do narrador realista permite o acesso.
Registando a natureza perversa, a maldade e o ódio transbordante da sua personagem, este narrador não nos deixa esquecer, contudo, que ela é simples peça de um duro jogo de poderes. No âmbito desse jogo, recai sobre os patrões a ameaça de privacidade destruída; já a criada é atingida pela precariedade social da sua condição. Não é por acaso que, ao agravar-se a doença de coração de Juliana, esta se transforma num elemento urgentemente descartável: enquanto D. Felicidade aconselha a “desfazerem-se dela”, “pô-la na rua!”, o próprio Jorge reage à falta de saúde daquela a quem se dizia ligado por uma dívida de gratidão: “– É necessário descartarmo-nos da criatura. Não quero que me morra em casa!” (349)”. É por isso que, no embate final com Sebastião, quando reconhece, enfim, a sua derrota, Juliana reconhece igualmente que “Eles tinham tudo por si, a polícia, a Boa Hora, a cadeia, a África!... E ela – nada!” (397). Eles, os patrões, os seus eternos inimigos.
O primo Basílio mereceu vários trabalhos de adaptação ao cinema, à televisão e ao teatro. Neste último caso, o romance passou para os palcos brasileiros, logo no ano da sua publicação, em 1878. Em Portugal, só em 1916 viria a ter o mesmo destino. Quanto à televisão, registam-se três adaptações: no México, em 1993 (teleteatro de um só episódio), na Alemanha, em 1969, e no Brasil, em 1988. A minissérie brasileira foi realizada por Daniel Filho para a TV Globo, e a personagem de Juliana reviveu no brilhante desempenho de Marília Pêra. O mesmo Daniel Filho retomou o romance no filme que dirigiu em 2007, cabendo desta vez o papel de Juliana a Glória Pires. Em Portugal, contam-se duas adaptações d’O primo Basílio ao cinema: uma de Georges Pallu, em 1923, a outra de António Lopes Ribeiro, em 1959. Nesta última, é Cecília Guimarães que dá vida à personagem. Dois outros filmes foram ainda realizados fora do espaço de língua portuguesa: no México, em 1935; na Argentina, em 1944, com o título El Deseo. O primo Basílio também foi adaptado ao bailado em 2019, com coreografia de Fernando Duarte (Danças em diálogos).
Referências
QUEIRÓS, Eça de. (s.d.). O primo Bazilio. episódio doméstico. Lisboa: Livros do Brasil.
ROSA, Alberto Machado da (1979). Eça, discípulo de Machado? Um estudo sobre Eça de Queirós. 2ª ed., Lisboa: Presença.
[publicado a 25-08-2016]