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Barão

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Autor: Capa de edição Portugália Editora

Barão (Branquinho da Fonseca, O Barão)

Personagem central da narrativa homônima, publicada pela primeira vez em 1942, o Barão não possui um nome próprio, é conhecido apenas pelo seu título nobiliárquico. A história nos é contada por um narrador homodiegético que em tudo difere do protagonista: um mero inspetor escolar cumprindo o seu trabalho durante um inverno chuvoso, desloca-se a uma zona remota da província, chegando, assim, a uma aldeia de cujo nome não se lembra. É lá que encontra, nessa mesma noite, a figura de um "Barão" do qual tinha apenas “vaga explicação” (Fonseca, 1998: 35) feita pela professora que o recebeu.

Já nas páginas iniciais podemos perceber o tom de imprecisão que perpassa toda a obra, não somente em relação ao tempo, espaço e acontecimentos, mas também na descrição da figura central da narrativa. Fisicamente, o Barão vai se modificando sob o olhar do inspetor num processo de gradação. Na primeira vez que o narrador o vê, relata: “Surgiu um homem de enorme estatura, que teve de curvar-se para poder passar. De ombros largos, com um grande chapéu na cabeça e de todo embrulhado, até aos pés, num capote preto” (36). Depois, enquanto convivem e se embriagam no solar antigo do Barão, o narrador afirma: “Vi-o crescer como um gigante (…) já não era o Barão, era o seu fantasma, um autómato de ferro e lata que me fazia calafrios de terror” (57); por fim, a nítida expansão física do Barão que, agora, sob o olhar do narrador, parece que “crescia, que aumentava de altura e de largura, tornando-se espantoso como um gigante” (63).

Com pouco mais de quarenta anos o aspecto brutal do Barão contrasta com seus gestos lentos. Por vezes, parecia “uma pessoa simpática” (36) e, por outras – “como quem deixa cair uma máscara” (36) –, se tornava “tosco e primitivo” (36). Foi com a veemência de “um déspota” (37) que o Barão convenceu o inspetor a ficar instalado em sua casa: “Quem manda aqui sou eu” (48).

Já no solar do Barão, o inspetor o caracteriza da seguinte forma: “Era um senhor medieval, sobrevivendo à sua época, completamente inadaptado, como um animal de outro clima.” (40). É pelo olhar desse narrador, cujas observações nem sempre são fiáveis, que acompanhamos as confissões íntimas do Barão (“Quando eu precisava de dinheiro trocava as amantes com meu pai”; 45), a dinâmica do solar (“andava ali como a dona da casa, oscilando entre baronesa e serva”; 43), a festa regada a comida, bebida, rememorações sobre Coimbra e relatos de viagens que causavam no Barão uma “espécie de saudade de si próprio” (42).

Essa saudade de si mesmo (“Fui outro… nesse tempo… E esse é que foi eu”; 67) é manifestada principalmente pela presença fantasmagórica d’Ela: uma mulher por quem tinha tido uma paixão e que, tal como o Barão, nunca é nomeada. Ambas as personagens, se inserem, dessa maneira, em um patamar alegórico, plenamente mítico, sem nomes, definições e afirmações individuais: d’Ela, o Barão tem apenas um retrato: “Mandei-o roubar” (45).

Depois do episódio da Tuna e do pequeno incêndio, há uma passagem com alto teor metafórico que envolve a partilha do pão, do vinho e uma espécie de rito batismal. A partir desse momento a ação passa a decorrer do lado de fora do solar do Barão, o intuito da personagem central é depor uma rosa na janela da casa d’Ela, no “castelo da Bela-Adormecida” (57).

O procedimento de figuração do Barão sempre sofre alterações quando fala dessa mulher misteriosa: “Era na verdade, outro homem, aquele que estava ali diante de mim” (50). A reconfiguração não se dá somente pelo olhar do narrador, mas, também, pelo próprio protagonista. Se antes ele se via como “um animal, uma pura besta” (46), diante da lembrança d’Ela ele se assume como “um pobre homem! (…) Sou um poeta” (51).

Há uma aura de loucura, sonho e magia naquela que parece ser uma noite irreal. Vagando pelos caminhos sombrios e cada vez mais fascinado com o modo estranho como o anfitrião domina o seu habitat, o narrador perde o Barão de vista. O que se sabe é que o pai do Barão era inimigo do pai de sua amada, e, ao dar fim à vida do seu inimigo, o pai também impossibilita a realização amorosa do filho. Depois de muito caminhar perdido na noite escura, ao conseguir finalmente retornar ao solar do Barão, o inspetor se depara com a notícia de que, apesar do tiro no ombro e da fratura no crânio a rosa “ficou… na janela” (74).

Segundo David Mourão-Ferreira, o Barão é “um ser que nos perturba, e revolta, e comove, com os seus defeitos e as suas qualidades, as suas obsessões, os seus sonhos, a sua índole pessoal e intransmissível” (prefácio a Fonseca, 1998: 29). A história da sua vida, as suas frustrações e incompletudes ficam sem respostas para o leitor. E foram justamente as lacunas daquilo que não viveu que fizeram com que ele se visse como “um escravo e um rei na mesma carcaça podre. Sou uma flor e um escarro” (69).

Se à primeira vista o Barão pode parecer se limitar ao tipo sociológico dos marialvas, um típico expoente de uma sociedade fechada (cf. Torres, 1989: 101), é pela narrativa insólita na qual ele se insere que percebemos que ele supera a possibilidade de se captar, com imediatez, a sua figuração. Há algo nele de intangível, de conflituoso, de inacabado: “Como depois compreendi, o Barão também era um homem em que lutavam Deus e o Diabo” (40).

A dramaticidade que envolve a trama fez com que Luís de Sttau Monteiro publicasse, em 1964, uma peça baseada na obra em questão. Antes disso, em 1943, a produtora Valerie Lewton iniciou, secretamente, as filmagens de um filme de terror que tinha como enredo a história de “O Barão”; contudo, o projeto foi descoberto e proibido pelo regime salazarista, sendo retomado apenas em 2005, pelo realizador Edgar Pêra. O filme O Barão estreou-se em 2011.

 

Referências

FONSECA, Branquinho ([1942]1998). O Barão. Prefácio de David Mourão-Ferreira. Lisboa: Relógio D’Água Editores.

TORRES, Alexandre Pinheiro (1989). Ensaios escolhidos. Lisboa: Caminho.

Raquel Brandão do Sêrro