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Rosaura

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Autor: Contos de Ãlvaro do Carvalhal

Rosaura (Ãlvaro do Carvalhal, Contos)

Rosaura, personagem-título do conto “O punhal de Rosaura” (1868), de Álvaro do Carvalhal, divide o protagonismo da história com Everardo.

A narrativa veio a público ao longo de 1866 na revista O Povo, e seus episódios iniciais intitulavam-se “Everardo”. Somente em 1868, quando publicada na íntegra, mantendo a primeira, “Everardo”, subdividida em nove episódios, e incorporando a segunda, “Lorenzo del Giocondo”, com três episódios, passa a intitular-se “O punhal de Rosaura”. Surge, no título, o punhal, elemento essencial à história.

A figuração de Rosaura subordina-se a variados processos advindos de Everardo, o narrador, que varia entre autodiegético, quando protagonista, e homodiegético, quando deuteragonista. Seja atuando apenas como personagem, seja desempenhando a função de narrador, ele é determinante para a figuração de Rosaura, composta como pobre vítima lamentosa, lacrimosa, “rola mansa”, escrava que “acaricia a ingrata paixão, que a furta à liberdade” (Carvalhal, 2004: 188); mulher trágica, frenética, digna de uma personagem shakespeariana, a quem faltaria apenas o punhal de Medeia.

Atribuindo-lhe a falta do punhal com que Medeia, protagonista da tragédia de Eurípedes, assassinou seus próprios filhos com Jasão, ele antecipa a aparição do punhal, prenunciado no título. Tal como Medeia, rejeitada por Jasão, Rosaura, rejeitada por Everardo, transfigura-se em “fera irritada” (194), refigura a protagonista grega e, de um só golpe, sem que ele a possa impedir, crava-se-lhe no peito um punhal, embebedando-se-lhe a roupa com seu sangue, que jorra no rosto dele. Apunhalando-se, ela morre.

Uma leitura interdiscursiva permite antever a intenção velada de Rosaura, como a de Medeia, de destruir seus inimigos com o próprio veneno deles. Daí a importância do punhal, elevado ao título na versão definitiva e aludido por Everardo no diálogo com Rosaura.

O negro António, fiel escravo da suicida, tendo ouvido os gritos de Everardo e os murmúrios de Rosaura, surge na cena e arranca o punhal da ferida. Everardo, sobressaltado com o ocorrido, toma o cadáver aos ombros e o vai esconder no subterrâneo da casa. Quando volta “para lavar o sangue do tapete, já ali não estava o escravo nem o punhal” (196). Esse episódio, em que somem o punhal e António, contribui para o enigma, determinante para a figuração de Rosaura.

Everardo parte para Veneza, mas, antes de partir, decide entregar o corpo da amante aos vermes. Seu rosto putrefato o fascina. Ele abre a cova e a deposita, cobrindo-a com camadas de terra. Morta, seu corpo em decomposição é enterrado.

Em Veneza, Everardo se entrega à pândega. No Carnaval, vagabundeando pelo “burburinho elegante das intrigas, de amores e de ciúmes” (199), depara-se com “um tentador dominó escarlata” (199). Sem certezas sobre o gênero dessa enigmática figura, porque “o trajo não tinha divisa, que estremasse sexo” (200). Everardo e o dominó contracenam. O diálogo empreendido é determinante para a efabulação. As primeiras interlocuções, envolvendo suas vidas, versam sobre a morte e seus contornos, sobre o amor e suas inter-relações, sobre verdades e mentiras.

O clímax tem início com o dominó perguntando a Everardo, cujo nome é explicitamente referido, se “já amou” (201), e este inquire “quem lhe disse o [...] meu nome?!” (201), mas a resposta vazia imprime novos contornos ao enigma. Adiante diz-lhe que “se lhe morreu nos braços a companheira da sua alma, se a sepultou em terra amassada com lágrimas, ensanguentando as mãos para lhe abrir uma cova; se, em paga de muito afeto, lhe ficou dela apenas um triste legado...” (201). Everardo oscila a referir-se ao dominó no masculino e no feminino, tratando-o por “ela”, “dama” e “senhora”, adjetivando-o de “formosa”. Esse procedimento importa para as figurações do dominó e de Rosaura.

Ao fim dessa estância, os dois embarcam em uma gôndola e navegam em direção à suposta casa do dominó. Na visão de Everardo, o cenário resgata uma aura terrorífica, denotando um espaço degradado, conforme situação já por ele vivenciada, e a lembrança da solidão fúnebre se estendia à volta dele. O percurso, o acesso à casa, a casa em si reavivam a atmosfera dos momentos anteriores à partida para Veneza. Essa correlação entre os dois momentos assoma nas figurações do dominó e de Rosaura. “Do fundo do peito arranca o dominó escarlata surdo gemido. Numa contracção sinistra cai sobre as espáduas o capuz, e rola no chão a máscara” (207).

Em mais um entrelace com episódios passados, “encrespavam-se-lhe os cabelos como juba de fera irritada” (207); e “o corpo [do dominó] recurva-se num conjunto de resoluta agilidade e de elegância escultural. E pregava em [...] [Everardo] uns olhos baços, vidrados e carregados de magnética fixidez” (207). Everardo vê, no dominó, Rosaura figurada lívida e petrificada, semelhante aos anjos que ornam os mausoléus, não a reconhecendo vívida e pulsante como a tivera, numa pretensa simbiose entre sua figura e a do dominó.

Essa sequência conclui com Everardo “fulminado, sem dar um gemido” (208), caindo “com todo o peso do corpo, arrastando a mesa na queda” (208). Ao acordar com o “fresco vento matutino” (208) e lançar “em torno vistas de investigação espantadiça” (208), descobre que “estava no cemitério” (208). Chega a supor que sonhasse, mas, “desengano, [...] [ergue-se] de salto do mármore, sobre o qual estivera estendido. Era um belo fragmento das pedreiras de Verona; uma campa sem lavores, rasa, original” (208). Eis que “sobre ela havia apenas um nome, um nome de mulher, um nome fatídico: ROSAURA” (208).

A primeira parte do conto, “Everardo”, termina com ele se entregando ao desmazelo. “Passados uns quinze dias, eu era isto [...]; era um velho. Mas um velho dissoluto e horrível. Andando “a transbordar os copos” (209): “Bem! Bebamos à memória da minha pobre Rosaura” (209). A segunda parte do conto, “Lorenzo del Giocondo”, inicia-se com o tinir de “copos uns de encontro aos outros” (209). E “eis que das sombras surge mais um sacerdote. Tem máscara no rosto, através da qual cintilam uns olhos como duas estrelas fixas. O corpo desaparece totalmente nas amplas dobras dum dominó escarlata” (209). Seja sacerdote, seja dominó, o amálgama dessas figuras encobre-se com a máscara. “Um copo para mim!, exclama [a personagem] em castelhano bárbaro com acentuação toscana, estendendo a mão para a mesa da orgia. Everardo cambaleia. Os outros estremecem” (209).

Referido mais de uma vez por “fantasma”, o amálgama figural dirige-se a Everardo, imputando-lhe medo e vergonha. Diz-lhe trazer notícias de Rosaura e insiste, acusando-o de cedo ter-se esquecido de sua amante, de estar assolado por remorsos, chegando ao ponto de o assustar com alusão à “vingança de sangue” (210). Everardo empalidece, porta-se como um covarde. O mascarado revela que o irmão de Rosaura, jurara à mãe, moribunda, vingar a morte da irmã: “Lorenzo jurara. O juramento, que fez, ninguém o ouviu. Mas devemos crer que projetou vingança de negro, selvagem, terrível. Acautela-te, Everardo” (211). Everardo pergunta quem lhe fala. “O dominó escarlata inclinou-se gentilmente, e desafivelou a máscara” (211). Diante da figura desmascarada, Everardo exclama “Rosaura! [...], aniquilado pela evidência do que para a sua razão era ainda contestável” (211). Tem-se, agora, sob a vista de Everardo, uma fusão de sacerdote, dominó e Rosaura, que, à frente, irá amplificar-se ainda mais.

O interlocutor revela que “dizem que com efeito [...] parecia infinitamente com [...] [a] irmã. A todos maravilhava a semelhança” (211). Aliviado, Everardo brada: “Lorenzo del Giocondo! Oh, graças, que respiro!” (212). Essa revelação, identificando o dominó com Lorenzo, irmão desconhecido de Rosaura, traz a lume uma variedade de processos de composição que intervêm em sua figuração. Enseja-se um diálogo entre os dois. Em meio ao embate, “Everardo desprendeu da lôbrega garganta uma risada de Mefistófeles. Lorenzo tinha na mão um punhal” (212) e logo lhe diz que “Graças à lealdade de António, [...] aqui está o punhal de Rosaura” (212).

Desse embate verbal, partem para um combate físico. O suposto fantasma atira “placidamente à cara [de Everardo] as fezes, que estavam num copo” (212). Contraído “em espasmo colérico [...] [,] como a fera, que mede salto sobre a rês [...] [, Everardo] pragueja, arrancando do roçado dorman uma navalha sevilhana” (213). A plateia assiste ao duelo. “Everardo levanta a navalha à altura da cabeça em concentrado frenesi” (213). Pelejam. “Everardo [...] faísca o ferro como relâmpago” (213). Embatem-se “nas trevas [de] um duelo de morte!” (213). A cena avança em floreios bélicos de um contra o outro. Contendores e espectadores arquejam. “Dos pés à cabeça dos conchegados grupos, subiam contracções, como correntes magnéticas, provocadas pelo receio, pela impaciência, pela incerteza do que ia acontecer” (214). Altercam-se rumores e silêncio. “Depois sentiu-se surdo rumor e um grito rouco” (214). A respiração é suspensa. “Abre-se de mansinho a porta, e sai tranquilamente um vulto” (214). Exclamações de espanto. “Era Lorenzo del Giocondo” (214). Grita-se o nome de Everardo. “Embalde o chamam. Caíra de bruços sobre a mesa da taverna com o punhal de Rosaura atravessado na garganta” (214).

O desfecho não resolve o enigma nem no que tange ao punhal nem no que se refere à figura de Rosaura. Seria Lorenzo a revivificação de Rosaura; seriam ambos uma mesma figura; seriam distintas?

 

Referência

CARVALHAL, Álvaro do ([1868] 2004). “O punhal de Rosaura”, in Contos. Fixação do texto e posfácio de Gianluca Miraglia. Lisboa: Assírio & Alvim.

Flavio García