Personagem secundária do romance Os Maias (1888), de Eça de Queirós. Do ponto de vista da sua figuração, Cruges revela certa importância no plano da ação social e cultural do romance, no período em que Carlos da Maia habita Lisboa (1875-1877) e no regresso do protagonista à cidade (1887). Além disso, é numa das casas da mãe de Cruges, “dona de prédios na Baixa” (Queirós, 2017: 253), que João da Ega entrega a Maria Eduarda os papéis que o estranho Guimarães recebera de Maria Monforte, contendo a trágica revelação.
Cruges surge pela primeira vez no capítulo IV, no outono de 1875, como “um diabo adoidado, maestro, pianista, com uma pontinha de génio” (153). A sua vida está envolta em mistério, uma vez que “Carlos nada sabia do seu passado, do seu interior, das suas afeições, dos seus hábitos. O marquês uma noite levara-o ao Ramalhete, dizendo ao ouvido de Carlos que estava ali um génio. Ele encantara logo todo o mundo pela modéstia das suas maneiras e a sua arte maravilhosa ao piano: e todo o mundo no Ramalhete começou a tratar Cruges por maestro, a falar também do Cruges como de um génio, a declarar que Chopin nunca fizera obra igual à Meditação de Outono do Cruges. E ninguém sabia mais nada” (253). O maestro surge, então, aos olhos do protagonista, “sempre vago, sempre tenebroso…” (253). É a partir de breves descrições que surgem como um esboço de retrato que nos deparamos com um “gesto nervoso da grenha crespa que lhe ondeava até à gola do jaquetão, (…) com olhinhos piscos, o nariz espetado” (162).
Aliada à aura de génio, surgem o spleen e o cansaço como outros traços característicos desta personagem queirosiana. Cruges encontra-se, por diversas vezes, numa atitude de preguiça e de lassidão, seja para tocar piano, levando uma “eternidade a desenroscar-se do canto do sofá” (250), seja para dialogar com outras personagens, aparentando “preguiça de argumentar” (249).
A partir da lassidão e do olhar mordaz sobre a realidade, Cruges aproxima-se de Carlos e de Ega, na medida em que tem a verve afinada contra o panorama cultural português, sem, contudo, nada fazer para que isso se altere, como fica explícito no episódio da ida a Sintra (capítulo VIII): “E o que o afligia é que o Ega, com aquele talento, (…) não fizesse nada… – Ninguém faz nada, disse Carlos espreguiçando-se. Tu, por exemplo, que fazes? Cruges, depois de um silêncio, rosnou encolhendo os ombros: – Se eu fizesse uma boa ópera, quem é que ma representava? – E se o Ega fizesse um belo livro, quem é que lho lia? O maestro terminou por dizer: – Isto é um país impossível…” (256).
Em concomitância com Alencar, Cruges surge no romance como o artista romântico, desta feita, o músico romântico que, pelos seus tiques e nervosismo, se assemelha à figura de Beethoven e de um certo Chopin. Contudo, para além de sensível, tímido e reservado, a personagem apresenta uma outra faceta mais libertina, associada ao às flirtations com espanholas e ao jogo (cf. 260 e 280). Deste modo, o maestro também tipifica a sociedade bloqueada pelos valores românticos que influenciavam a vida portuguesa a nível social e cultural, nos seus gestos, nas suas atitudes e nos seus defeitos.
No episódio do sarau do Teatro da Trindade (capítulo XVI), para além de tocar uma das suas Meditações de Outono, nome sugestivamente próximo dos Nocturnes de Chopin, Cruges interpreta a Sonata Patética de Beethoven. Indiferente à música, e após uma personagem chamar à peça “a Sonata Pateta” (589), a plateia não compreende, por não ter educação e gosto, o alcance da obra tocada pelo pianista, que sai do palco “enxugando as mãos ao lenço” (590). Uma vez mais, a “linha postiça de civilização e a atitude forçada de decoro” (349) da sociedade lisboeta saem desmanchadas.
Já no final do romance, com o breve regresso de Carlos à capital portuguesa, Cruges aparece, continuando com o “mesmo desleixo (…) sempre esguio, com o nariz mais agudo, a grenha caindo mais crespa sobre a gola do paletot” (677). Se o Alencar surge nas últimas páginas, de acordo com o olhar cético, irónico e condescendente de Carlos e de Ega, com “as proporções dum Génio e dum Justo” (688), Cruges não deixa de ser, sob o mesmo olhar, uma glória nacional. A sua ópera cómica, a Flor de Granada, foi um sucesso, fazendo do maestro um artista respeitado. Por essa razão, o Barradas andava fazendo o seu “retrato a óleo” (678).
No que diz respeito à sobrevida da personagem, são de assinalar a minissérie produzida pela Rede Globoem 2001, com texto texto de Maria Adelaide Amaral, sendo Cruges representado por Ilya São Paulo, e a adaptação cinematográfica de João Botelho, de 2014, onde Diogo Vida faz o papel do maestro.
Referência
QUEIRÓS, Eça de (2017). Os Maias. Episódios da vida romântica. Edição crítica de Carlos Reis e Maria do Rosário Cunha. Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda.